O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que completa 21 anos hoje (13), pode comemorar muitas conquistas, mas ainda há muito a ser concretizado. O ECA foi um divisor de águas, porque antes existia o Código de Menores, cujo tratamento dispensado à criança era de caráter discriminatório, que associava a pobreza à “delinqüência” e encobria as reais causas das dificuldades que levavam esse público a tal condição, como a desigualdade de renda e a falta de opções de vida.
Uma nova fase iniciou-se com a nova lei, que passou a consider ar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, e não objetos de intervenção, conforme o tratamento que havia sido dispensando a eles até então.
O Estatuto foi o responsável pela transformação da "criança e do adolescente menores" em "criança e adolescente cidadãos". Com ele, uma nova concepção foi adotada e instituiu-se a ideia de proteção integral, não mais estando limitada ao atendimento de “menores infratores ou em situação irregular”. Muito mais do que isso, o ECA prevê a proteção aos direitos fundamentais da criança e do adolescente - direito ao desenvolvimento físico, intelectual, afetivo, social, cultural, entre outros.
Apesar de tudo isso, o Brasil ainda tem milhões de crianças e adolescentes que trabalham e são privados de direitos básicos. Milhares estão expostas às piores formas de trabalho infantil e envolvidas em atividades que prejudicam de forma irreversível seu pleno desenvolvimento físico, psicológico e emocional, comprometendo o futuro.
O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil – FNPETI, do qual o Sinait participa, está promovendo seminários, congressos e cursos em diversas capitais brasileiras em comemoração à data.
Abaixo, matérias da Agência Brasil que traz entrevista da secretária nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, Carmen Oliveira, e do diário do Diário do grande ABC:
13-7-2011 – Agência Brasil
ECA mudou a maneira de a sociedade lidar com crianças e adolescentes, avalia secretária
Daniella Jinkings e Gilberto Costa - Repórteres da Agência Brasil
Brasília – A secretária nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, Carmen Oliveira, avalia que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa hoje (13) 21 anos, mudou a maneira como a sociedade lida com o público infantojuvenil. “[Antes do ECA] eles [crianças e adolescentes] eram considerados sujeitos menores de idade e menores também no acesso a direitos.”
Segundo a secretária, o ECA trouxe diversos avanços para o Brasil. Um dos pontos mais importantes foi a criação dos conselhos tutelares. “O conselho tutelar é uma figura ímpar, pois não existia na história brasileira antes do estatuto. Atualmente, 98% dos municípios têm conselhos tutelares”.
De acordo com ela, o governo pretende aumentar os investimentos nessas unidades. “É um investimento que vai ser feito para qualificar esse atendimento, para que realmente não tenhamos os problemas que temos, como conselho tutelar sem telefone, sem sala apropriada para atendimento, sem carro para fazer uma abordagem na rua ou para buscar uma situação de violação de direitos.”
Confira a seguir a entrevista concedida à Agência Brasil:
Agência Brasil: O Estatuto da Criança e do Adolescente completa 21 anos nesta quarta-feira. O que mudou nessas mais de duas décadas de vigência do estatuto?
Carmen Oliveira: De um modo geral [houve mudanças] sim, mas com algumas restrições. Temos hoje uma visível mudança do que tínhamos na vigência do antigo Código de Menores. Em primeiro lugar, porque não estava assegurada naquele marco legal a noção de que criança e adolescente têm direitos fundamentais, direitos humanos e iguais aos dos adultos. Eles eram considerados sujeitos menores de idade e menores também no acesso a direitos. Há, atualmente, um respeito maior sobre a opinião de crianças e adolescentes. Eles são chamados a dar suas opiniões, emiti-las, inclusive nos procedimentos judiciais. Isso é assegurado.
ABr: A maneira como a sociedade e as famílias lidam com crianças e adolescentes também mudou?
Carmen: Estamos vivendo um momento peculiar na vida contemporânea. Durante séculos, a infância e a adolescência não estavam na pauta. Não havia essa convivência com a própria família, tampouco com a comunidade. O conceito de infância é muito recente na história da humanidade e do adolescente é mais recente ainda. Temos as instituições e as famílias. Quando falo instituições, não falo só sobre as instituições de atendimento, mas também sobre a escola, que tem uma visão diferente dessa criança e desse adolescente. Não podemos atribuir isso apenas à vigência do estatuto, mas às mudanças culturais que foram acontecendo. Vivemos hoje um momento de implementação do estatuto e de mudanças culturais dentro deste momento da história da humanidade que faz com que a infância e a adolescência não sejam a mesma que tínhamos há 20 anos.
ABr: É difícil falar sobre o ECA e não abordar a questão social. Entre 2002 e 2010, houve um crescimento de 9.555 para 17.703 do número de adolescentes internados. Esse foi justamente o período em que houve o maior movimento de inclusão social e ascensão de classes econômicas. Por que houve esse crescimento? A questão da necessidade de cumprir medidas socioeducativas está atrelada à exclusão social?
Carmen: Podemos agrupar esses números sem distorcê-los. Por exemplo, pegando o corte de 1996 a 2004, tivemos um crescimento na internação de 218%. É praticamente impossível administrar um sistema iniciado com uma gestão com mil adolescentes e concluído com 2 mil. O que acontece é que você tem as mesmas unidades de internação para atender o dobro de meninos, e nessa duplicação você vai ter unidades superlotadas. Isso, para nós, é quase sinônimo de violação dos direitos. De 2004 a 2010, nós tivemos um aumento de 31% [das internações de adolescentes], ou seja, caiu de 218% para 31%. Em 2006, começamos a trabalhar já com o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo [Sinase]. O sistema socioeducativo no Brasil tende à estabilização no momento. Nós estamos, assim, oscilando entre um ano sem crescimento, para anos com aumento de 2%, 4%. No ano passado, os 4% de crescimento são resultado do aumento na internação provisória [quando o juiz interna o adolescente provisoriamente até tomar uma decisão a respeito da medida que será aplicada].
ABr: Ainda há pontos que podem ser melhorados no ECA, passados esses 21 anos?
Carmen: Sim. Defendemos o contínuo aperfeiçoamento do estatuto. Não o consideramos um marco legal "imexível". Várias mexidas já foram feitas no ECA, tentando melhorar aquilo que se apresentava como lacuna ou até mesmo com uma certa impropriedade. Um exemplo concreto disso foi a Lei de Adoção, aprovada recentemente. Ela melhora o estatuto em vários pontos, tanto nos procedimentos de adoção quanto nos de abrigamento institucional. No que diz respeito ao sistema socioeducativo, temos hoje em tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Ele aprimora várias coisas do estatuto, como o cumprimento de medida de internação. O único direito restrito ao adolescente é o de ir e vir. Ele tem que ter acesso à saúde, à educação, à profissionalização. O Sinase vai tornar mais concreto o que deve ser feito nos casos de aplicação de medidas socioeducativas, inclusive as responsabilidades que o gestor tem na oferta desses cuidados.
ABr: Como está a questão dos conselhos tutelares no país?
Carmen: Um ponto a ser destacado são os conselhos tutelares. O conselho tutelar é uma figura ímpar, pois não existia na história brasileira antes do estatuto. Ele é tão pioneiro que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Temos uma implantação muito boa, pois 98% dos municípios brasileiros têm conselho tutelar. Porém, a maioria funciona com grande precariedade. O entendimento da ministra Maria do Rosário [da Secretaria de Direitos Humanos] é que os conselhos tutelares são a nossa ponta de lança em direito da criança e do adolescente nos municípios. Vamos fazer um grande investimento de reordenamento. As instalações físicas serão financiadas, também haverá atendimento com um kit e equipamentos. É um investimento que vai ser feito para qualificar esse atendimento para que realmente não tenhamos os problemas que nós temos, como conselho tutelar sem telefone, sem sala apropriada para atendimento, sem carro para fazer uma abordagem na rua ou para buscar uma situação de violação de direitos.
13-7-2011 – Diário do Grande ABC
ECA faz 21 anos com ações fragmentadas
Camila Galvez e Elaine Granconato
O Estatuto da Criança e do Adolescente chega aos 21 anos com ações fragmentadas. Embora a legislação garanta direitos e proteção integral, na prática, não é o que ocorre. Especialistas ouvidos pelo Diário defendem sistema estruturado da rede de serviços e políticas públicas integradas e contínuas.
"O poder público ainda não conseguiu. Mas também se trata de uma mudança cultural da sociedade", criticou a gerente executiva de Programas e Projetos da Fundação Abrinq/Save The Children, Denise Cesário. Segundo ela, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei para alteração do ECA, quando, na realidade, ainda não se implementou o que o estatuto preconiza.
Para a gerente, há necessidade de políticas públicas de qualidade e continuidade para fazer a lei se tornar eficaz. Ou seja, mais investimentos na infraestrutura do sistema de garantia. "É preciso capacitar os profissionais e equipar os órgãos de defesa, como os conselhos tutelares", defendeu.
O presidente da Comissão de Direitos Infanto-Juvenis da Ordem dos Advogados de São Paulo, Ricardo de Moraes Cabezón, é mais incisivo. "Falta uma padronização dos procedimentos para afastar esses jovens das ruas. É um faz-de-conta", afirmou. O advogado ainda ressaltou que se banalizam discussões sérias como se fossem situações simples, como, por exemplo, com a redução da maioridade penal.
Opinião compartilhada por Marcelo Caran, especialista em políticas públicas para infância e juventude da Fundação Projeto Travessia, de São Paulo. Para retirar a criança da situação de rua, segundo Caran, há necessidade da integração das várias áreas, como Saúde, Educação, habitação e saneamento básico. Caran explicou que esse trabalho pode levar até um ano. "Por dia, dez vão para as ruas. Não dá para tratarmos o problema de forma fragmentada", avaliou.
Para o vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, é preciso garantir educação. "A partir dos 14 anos, o adolescente pode ser aprendiz, mas, para isso, deve ter estudo e preparo para ser treinado em uma empresa ou órgão público sério, com condição de ensinar uma profissão ao jovem", destacou.
Na pele
O menino magro e franzino com quem a equipe do Diário conversou na tarde de ontem, na Fundação Criança de São Bernardo, é prova real de que se leva tempo para tirar um jovem da rua. Ele começou a vender balas nos semáforos aos 14 anos. "Precisava pagar as contas da minha casa, pois meu pai não conseguia dinheiro como catador", afirmou.
Hoje, aos 16, ele faz parte do Projeto Contando Histórias, que paga bolsa mensal de R$ 200 para o jovem atuar em bibliotecas e escolas municipais. Ele também voltou a estudar e a sonhar. "Sei que é difícil, mas quero ser médico".
Conselheiro tutelar recebe até R$ 3,8 mil por mês na região
Os Conselhos Tutelares da região têm 65 conselheiros eleitos para mandatos de três anos, que se encerram no fim de 2011. Eles são encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Recebem salário de até R$ 3.800, caso dos 15 conselheiros de São Bernardo, divididos em três conselhos.
Em Santo André e Diadema são duas unidades, com cinco conselheiros cada e salários de R$ 2.000 e R$ 2.642, respectivamente. São Caetano, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra têm cinco conselheiros cada. Em São Caetano, eles ganham R$ 1.400 e, em Mauá, R$ 1.300. Ribeirão e Rio Grande não informaram.
Apesar do cargo remunerado, os conselheiros ainda deixam a desejar, principalmente no que diz respeito ao trabalho infantil. Meninos-placa, vendedores e rodinhos estão pelas ruas para quem quiser ver, mas o conselho age somente se recebe denúncia.
A abordagem de rua só existe em Santo André, São Bernardo e Diadema, o que dificulta a chegada de denúncias em outras cidades. E assim as crianças seguem nas ruas.
Mãe explora cinco filhos em farol de Diadema
As seis crianças são pequenas. Têm entre 8 e 15 anos, calçam chinelos de dedo e roupas rasgadas. Seus rostos estão sujos, mas os lábios sorriem. "Isso daqui é a maior brincadeira, tia!", disse um deles. A diversão corre o risco de terminar em tragédia: eles vendem balas na Avenida Fábio Eduardo Ramos Esquível, em Diadema, e podem ser atropelados pelos carros que passam em alta velocidade quando o semáforo está verde.
"Tenho medo de ir no banheiro e, quando voltar, algum maluco ter passado em cima deles", disse a mãe de cinco dos pequenos e tia da sexta, Sonia, 36, que não informou o sobrenome. Ela estudou até a quarta série do Ensino Fundamental e está desempregada. Tem oito filhos para criar, com idades entre 4 e 19 anos.
Sonia admitiu que as crianças sustentam a casa, embora ela também venda balas. "As pessoas têm dó deles e dão mais dinheiro. Enquanto vendo dez (balas), elas vendem 30", garantiu. A família consegue ganhar cerca de R$ 120 por dia.
Conforme o artigo 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente, crianças não podem trabalhar: "É proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos", diz.
Sonia conhece a lei, mas alegou não ter opção. "Meus meninos passariam fome se a gente não viesse, não tem jeito", lamentou.
O filho mais velho de Sonia, que tem 19 anos, que poderia ajudá-la a manter a casa, também está desempregado. "É difícil porque ele largou a escola", afirmou.
A família vive no Sítio Joaninha. Sonia garantiu que leva os filhos para os faróis apenas fora do horário da escola e durante as férias. "Tenho que manter eles estudando porque a gente ganha Bolsa-Família". São R$ 160 por mês, dinheiro que não dá para alimentar as nove bocas famintas da casa.
Atendimento
O Conselho Tutelar da cidade afirmou não ter conhecimento do caso.
Já o projeto Meninos e Meninas de Rua, responsável pela abordagem desse tipo de caso, afirmou que desde maio atua junto à família de forma a atendê-la na rede de proteção da cidade.
"Não podemos tirar essas crianças das ruas de um dia para o outro. Caso contrário, elas irão para outro ponto ou cidade, e o trabalho foi perdido", disse o coordenador do projeto em Diadema, José Maria Oliveira Viana.
Ele explicou que existe a possibilidade de inserir as crianças no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do governo federal, o que aumentaria a renda da família e proporcionaria atividades para manter as crianças longe das ruas. "Mas essa mãe precisa receber orientação também. Ela deve entender que é responsável pelas crianças e que, como tal, deve garantir a elas o direito de serem crianças", afirmou.
“A rua machuca e deixa cicatrizes”
Com olhar diferenciado e sensível, o ex-menino de rua Antonio Leonardo Duarte Pereira, que colhia e vendia cajus em Juazeiro do Norte, no Ceará, aos 7 anos, e migrou para São Bernardo em 1992, é exemplo de superação. "A rua machuca, deixa cicatrizes", revelou, embora ali tenha conhecido o retrato fiel e cru da desigualdade social.
Hoje, seu nome profissional é Leonardo Duarte, 31, fotógrafo com trabalhos premiados no País e educador social por essência. Criança, trocou a bola de futebol e a escola pelo trabalho precoce nas ruas. "A necessidade me levou para esse caminho", recorda-se o filho de dona Maria do Socorro, 60, e do pai, falecido, José Saturnino Filho, com quem teve menos convívio pelo fato de ter deixado a família - Leonardo e mais três irmãos, ainda pequenos, em solo cearense.
Sem religião e devoto de Deus, o pequeno Leonardo aproveitava do canto dos romeiros que passavam em frente de sua casa para vender cajus. Era ouvir o "Bendito louvado seja", cântico católico, para se postar na calçada. No terreno, a família Duarte cultivava 25 pés da fruta.
"Tudo que ganhava sempre entregava para a minha mãe. Sempre foi assim", afirmou Leonardo, que ainda trabalhou informalmente como guardador de veículos em churrascaria e pizzaria. "Posso pastorar o seu carro?", perguntava o pequeno, de corpo franzino.
E foi dentro de um automóvel Gol, carregado por caminhão cegonheira, que a família Duarte chegou em São Bernardo. Era o ano de 1992. "A viagem durou cinco dias", lembra-se. Na cidade grande, trazia um sonho na pequena bagagem de mão: "Encontrar uma bicicleta no lixo". Afinal, era o que um amigo havia comentado.
Por duas semanas, Leonardo manteve a ilusão em alta. O patrão de uma das irmãs emprestara um apartamento, no bairro Demarchi, inclusive com "elevador e piscina". Depois, a realidade: casa simples e aluguel no Jardim Silvina, região da periferia de São Bernardo.
Ali, começara sua peregrinação pelas ruas. Primeiramente, batia de porta em porta para pedir alimentos. Ao contrário do cearense solidário, encontrou uma população mais sisuda e desconfiada. O jeito foi partir para outra investida em troca de dinheiro.
Foi camelô por cerca de três dias, aos 13 anos, ao vender alho e chinelo, combinação esquisita, na Praça Lauro Gomes. Dias depois, seu novo desafio foi uma banca de jornal. "Lia bastante nessa época", afirmou Leonardo, autodidata e que aprendeu a ler e escrever sozinho. No Nordeste, só cursou a primeira série por três meses. Ali, comprava colher de manteiga e uma xícara de óleo.
Torcedor do Corinthians, Flamengo e Ceará, o ex-menino de rua cearense cresceu e perdeu o sotaque por proteção. "Fui discriminado", acrescentou. Hoje, é educador social no Projeto Meninos e Meninas de Rua. Ex-fotógrafo de jornais paulistas conhecidos, contou um segredo. "Recebi meu primeiro holerite dia 28 de junho, aos 31 anos de idade", afirmou, o mais recente trabalhador brasileiro registrado em carteira.