Na quarta-feira, 5 de outubro, a Constituição Federal completou 23 anos. Desde a data histórica em que Ulysses Guimarães levantou a Constituição Cidadã em plenário, em 1988, muita coisa mudou no país. Foi muita ousadia e coragem inscrever naquela Carta todos os artigos que hoje norteiam as relações sociais, trabalhistas e humanas. Parecia um sonho, mas os direitos foram se efetivando aos poucos; é verdade que alguns ainda carecem de regulamentação, como o direito de greve dos servidores públicos, mas mesmo isso será conquistado, e só o será por causa da atual Constituição.
Os artigos 7º e 21, em particular, trouxeram avanços extraordinários ao definir os direitos dos trabalhadores e trazendo para a competência da União a exclusividade de manter e organizar a Inspeção do Trabalho.
Para o Sinait, a Inspeção do trabalho teve reconhecido o seu papel pelos Parlamentares Constituintes, atentos aos preceitos do Estado Democrático de Direito, da prevalência dos direitos humanos, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da redução das desigualdades sociais e dos valores sociais do trabalho, presentes nos fundamentos e princípios inscritos na Constituição Federal de 1988. Por isso consignou esta tarefa à União, no mesmo patamar de declarar a guerra e celebrar a paz, assegurar a defesa nacional, emitir moeda e organizar e manter o Poder Judiciário e o Ministério Público, conforme consta no art. 21. O desequilíbrio na relação capital versus trabalho, na qual o trabalhador não tem seus direitos respeitados, exige pronta intervenção do Poder Público, que o faz por meio da Auditoria-Fiscal do Trabalho. E também os servidores públicos que exercem atividades deste porte devem ter prerrogativas, garantias, direitos e deveres enfim, para que se cumpra com efetividade o preceito constitucional.
É combatendo diariamente o trabalho escravo, buscando a erradicação do trabalho infantil, fiscalizando as normas de segurança e saúde, protegendo o trabalhador dos riscos de acidentes de trabalho, verificando o registro em carteira e promovendo o combate à informalidade e o pagamento de salários, cujo resultado reflete no recolhimento do FGTS, da contribuição previdenciária, do Imposto de Renda, no FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador -, e no pagamento do Seguro Desemprego, dentre outros, que os Auditores-Fiscais do Trabalho concorrem, efetivamente, para a validação dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição Federal, onde deve prevalecer a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho que estão no artigo 1º da Carta.
Estas convicções já foram apresentadas pela presidente do Sinait, Rosângela Rassy, e por todos os outros presidentes que a precederam, em várias ocasiões, circunstâncias e solenidades, a fim de reafirmar a importância da Inspeção do Trabalho e da Constituição Federal, que deve ser respeitada e cumprida.
Nesta data de aniversário o Sinait presta suas homenagens aos parlamentares constituintes que tiveram visão de futuro e garantiram um país melhor, mesmo que todos os preceitos constitucionais não sejam ainda efetivados. Sempre houve e sempre haverá olhos vigilantes cuidando para que a cidadania seja uma realidade ao alcance de todos os brasileiros.
Leia, a seguir, dois artigos que lembram a data.
5-1-2011 – Blog do Sakamoto
A Constituição Federal de 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988, não é perfeita, longe disso. Mas olhando para trás, é incrível como os legisladores conseguiram que o respeito aos direitos humanos estivesse no texto final. Não temos sido competentes para por em prática muita coisa que está lá dentro, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita. Mas, aí, já é outra história.
Nas últimas semanas, estive em alguns eventos no Congresso Nacional, entre comissões, reuniões e afins, que me deram paúra no estômago. Nobres parlamentares defendendo uma revisão profunda da Constituição para a remoção de determinados entraves que impedem o desenvolvimento desta nação. Leia-se “entraves” como instrumentos que proteger minorias, por exemplo.
Não sei se é ignorância ou má fé de quem tem aspirações políticas maiores e quer surfar com a falta de informação alheia, mas alguns pontos questionados são cláusulas pétreas de nossa Carta Magna e não podem ser mudados nem que a vaca tussa. A questão dos direitos fundamentais, por exemplo – em que se inserem, a liberdade, a dignidade e a função social da propriedade.
(Não preciso nem falar da questão de trabalho escravo, que já virou figurinha repetida. Se fosse taguear a boca de alguns deputados, as palavras seriam “escravo – mudança – urgente – snif”.)
Muitos setores querem retalhar a Constituição ao seu interesse. E alguns fazem isso no dia-a-dia. Nos últimos anos, com a diminuição de sua autonomia real frente ao Poder Executivo, o cerne da atividade parlamentar foi migrando para o ato de fazer emendas à Constituição. Matérias infraconstitucionais estão sendo alocadas dentro da Carta Magna a torto e direito.
As discussões mais amplas envolvendo o assunto versam a respeito de alterar a representação política e o processo eleitoral, incluindo aí seu financiamento. Ou o sistema tributário brasileiro, com a desoneração de algumas áreas. Na esteira desses debates, insere-se outros. Lobistas que falam – em off, básico – por representantes do patronato cutucam daqui e dali para mudanças diminuindo direitos trabalhistas. Outros lobistas pressionam pela revisão na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem função social.
Do outro lado, grupos, organizações, movimentos, sindicatos tentando manter direitos ou tirá-los do papel. Noves fora, grupos religiosos que querem transformar a proibição ao aborto ou à eutanásia impossíveis de serem quebradas por interpretação do Supremo Tribunal Federal – o que é bem possível que aconteça mais cedo ou mais tarde.
A Constituição de 1988 foi um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais. O discurso de uma nova Assembléia Constituinte significa repactuar a sociedade. Então, para mudar isso de forma profunda, só rompendo a ordem institucional, através de uma revolução/golpe de Estado. Não acho que é isso que esses proponentes de mudanças querem.
A própria Constituição em seu artigo 60 restringe o que pode ser mudado para não diminuir as conquistas e os direitos adquiridos que hoje viraram pontos de pauta nos corredores de Brasília.
Mesmo as decisões de uma Constituinte reduzida, eleita com a tarefa de atuar em reformas política e tributária, teriam que, provavelmente, passar novamente pelos deputados e senadores do Congresso, que reabririam a discussão. Em outras palavras: dã. Como me explicou um jurista de atuação nacional e grande discrição: ou se faz uma revolução para mudar tudo ou esquece. No atual contexto, e por mais profunda que seja sua crise de legitimidade, ninguém foge da democracia representativa. Nem a extrema esquerda, nem a extrema direita.
Por mais que ela tenha virado uma colcha de retalhos, segue sendo de vanguarda em um país que, nem de longe, e apesar das conquistas, conseguiu efetivar seus direitos fundamentais. Apesar de completar hoje 23 anos, ela continua uma adolescente, não tendo mostrado ainda todo o seu potencial. Esperamos que isso mude em breve.
6-10-2011 – Congresso em Foco
Quem tem medo dos 23 anos da Constituição?
“A Carta de 1988 impõe um projeto de país que ainda não foi concretizado, mas que em razão de sua força vinculante, faz dela a grande locomotiva das políticas públicas e das decisões judiciais”
Pedro Taques - Senador da República (PDT-MT)
Ao completar 23 anos no dia 5 de outubro deste ano, a Constituição da República Federativa do Brasil consolida o maior período de normalidade democrática já vivido na história política brasileira, mostrando o acerto dos constituintes de 1988, quando legaram ao Brasil uma Carta cidadã que impulsiona o país rumo a um Estado Social e Democrático de Direito.
Isso porque, sem abrir mão dos direitos de liberdade e das garantias formais de limitação do poder – tais como a separação dos poderes e o sistema de freios e contrapesos, típicas da proposta liberal –, a Constituição de 1988 contemplou os direitos sociais em igual dimensão fundamental, dando ensejo a um novo papel para o Estado brasileiro: conciliar o modo de produção capitalista com as exigências de socialização dos bens e serviços e promoção de maior igualdade real, não apenas perante a lei. Assim, a preocupação social aliou-se à restauração da democracia enquanto diretrizes maiores da Nação.
Ao se compreender a Constituição não apenas como texto legal, mas como um projeto que se realiza na progressiva tensão entre as imposições normativas e as condições históricas e políticas da sociedade, tem-se que ela se realiza a cada dia, como se fosse uma casa em construção, em que as paredes foram erguidas em 1988 e os cômodos, os móveis e os ornamentos são construídos ao longo do tempo.
Nesse sentido, baseando-se nos ensinamentos do constitucionalista alemão Konrad Hesse, uma Constituição, ao ser promulgada, nasce com pretensão de eficácia, o que significa reconhecer que uma lei, sozinha, não muda o mundo, mas busca concretização progressiva a depender da vontade da população que a anima – ou seja, dos cidadãos que são sua alma e seus intérpretes.
Desse modo, contra qualquer acusação de que nossa Constituição é utópica, deve-se compreender que sua força normativa (norma-ativa) não está restrita aos limites do possível, mas sim concentrada em seu potencial de efetivação a ser aferido de acordo com as condições sociais, políticas e econômicas de cada momento. Portanto, ações materialmente impossíveis em 1988 podem se tornar plenamente realizáveis e economicamente viáveis em 2012 ou, quiçá, 2018, quando completar seus 30 anos.
Tome-se, como exemplo, o caso do direito à saúde, previsto no art. 196 da Constituição. Acerca desse dispositivo, nossa melhor doutrina constitucionalista entende que ele expressa um direito público subjetivo, o que significa dizer que toda vez que um cidadão fica doente e o Estado não fornece os meios para sua cura, essa recusa se transforma numa violação à Lei Fundamental que, por sua vez, gera o direito de ação para o cidadão, que recorre ao Judiciário para ter seu direito à saúde atendido.
Imagine-se, então, um paciente soropositivo que em 1988 apelasse ao Judiciário, pedindo que o Estado garantisse sua saúde, com base no citado dispositivo constitucional. Tal pretensão, ainda que justificável, não poderia ser atendida pelo magistrado, já que o pedido era materialmente impossível em razão da inexistência de tratamento adequado à época. Contudo, em torno de dez anos depois, os medicamentos se tornaram mais precisos e já era possível um tratamento crônico que mantivesse a doença sob controle.
Mais ainda: hoje, decorridos 23 anos após a promulgação da Constituição, os coquetéis anti-HIV não apenas existem, mas seus custos se tornaram muito mais baixos – em grande parte em razão da vontade política que, inclusive, ameaçou quebrar as patentes de medicamentos – tornando economicamente viável seu fornecimento universal pelo Estado. Como consequência, o programa federal de provisão desse tipo de medicamento se tornou referência mundial e o mandamento constitucional foi, neste caso, satisfatoriamente atendido.
Esse exemplo mostra a importância de se perceber o quanto é importante a compreensão de que a Carta de 1988 impõe um projeto de país que ainda não foi concretizado, mas que em razão de sua força vinculante, faz dela a grande locomotiva das políticas públicas e das decisões judiciais, ditando os rumos, por assim dizer, da ação governamental nos três poderes da República, sendo daí seu caráter dirigente. Daí a inevitável pergunta: quem tem medo do presente e do futuro da Constituição?
Desta feita, ao postular que a Constituição de 1988 se tornou um marco no processo civilizatório brasileiro ao guiar o país no rumo da plena cidadania, propõe-se que essa grande obra do legislador constituinte ainda tem muito fôlego para compelir os poderes a agirem em prol da efetivação dos direitos nela previstos, mesmo que de maneira progressiva, pois o caminho ainda é longo (apenas no âmbito legislativo, são necessárias algo como 35 leis para regulamentá-la) e a carência na satisfação dos direitos impressiona. Do mesmo modo, desacreditá-la a essa altura do campeonato, com o jogo em andamento e o time no ataque, só pode ser manifestação de grande oportunismo político, típico de gente sem causa nem ideologia, ou mesmo comprometida com as mais mesquinhas razões de mercado.