Notícia de hoje na Folha de São Paulo revela que o governo fez acordo com a empresa Cosan (flagrada em 2007 explorando trabalhadores sob regime análogo ao de escravos), e, como conseqüência, a Advocacia Geral da União – AGU deixou de recorrer da decisão liminar que coloca a empresa fora da Lista Suja do Trabalho Escravo. A notícia da Folha, já no título, afirma que o acordo fragiliza a Lista Suja e o combate à escravidão contemporânea no Brasil. Daqui por diante, o risco é de que mais e mais empresas tentem acordos semelhantes e o governo ceda em vários deles, apesar das provas do crime colhidas pela fiscalização trabalhista.
A promessa da Cosan, em troca de ficar fora da Lista Suja, é aprimorar o sistema de fiscalização interna e se submeter a controles externos. Ora, na opinião do SINAIT estas são obrigações de empresas sérias e corretas, e não deveriam ser objeto de negociações ou acordos.
A notícia do acordo está sendo muito mal recebida pelos segmentos comprometidos com a erradicação do trabalho escravo como a Comissão Pastoral da Terra e ONG Repórter Brasil. A medida foi criticada também pela Auditora Fiscal do Trabalho – AFT Ruth Beatriz Vasconcelos Vilela, ex-secretária de Inspeção do Trabalho, ouvida pela reportagem da Folha, para quem, a se fazer acordos como esse seria melhor extinguir a Lista Suja. O jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, em seu blog, hoje, comentou a matéria da Folha e desconstruiu os argumentos da AGU para justificar o acordo, para o SINAIT, inaceitável.
Auditores Fiscais do Trabalho e procuradores do Trabalho foram testemunhas da situação degradante dos trabalhadores e vítimas de perseguição política diante do escarcéu armado pela empresa à época da fiscalização. AFTs foram chamados em audiência pública no Congresso Nacional, intimidados e questionados publicamente, mas, como em todo trabalho sério, puderam comprovar a veracidade dos fatos por meio de documentos, depoimentos de trabalhadores, imagens gravadas e fotos, que formaram um dossiê de grande volume.
“A atitude da AGU desvaloriza o trabalho dos AFTs, que flagraram o trabalho escravo praticado pela Cosan e suas terceirizadas, e documentaram tudo, têm provas. É o governo trabalhando contra seus próprios agentes públicos e contra os trabalhadores”, diz, indignada, a presidente do SINAIT, Rosângela Rassy. “O SINAIT vai denunciar este caso à Conatrae e em todas as instâncias que tiver oportunidade. Coisas desse tipo têm que ser cortadas pela raiz, não podem mais acontecer”.
Leia, a seguir, a reportagem do jornal Folha de São Paulo e comentário do Blog do Sakamoto:
28-2-2011 – Folha de São Paulo
Acordo mina programa de combate a trabalho escravo
Governo desiste de recorrer contra liminar que excluiu Cosan de "lista suja". Decisão abre brecha que poderá ser explorada por outras empresas flagradas por fiscais do Ministério do Trabalho
JOÃO CARLOS MAGALHÃES - DE BRASÍLIA
Um acordo fechado no ano passado pelo governo federal com o grupo Cosan, maior produtor de açúcar e álcool do mundo, abriu uma brecha que poderá reduzir a eficácia do principal instrum ento de que o país dispõe para combater o trabalho escravo.
O acordo permite que a Cosan mantenha seu nome excluído da chamada "lista suja" do Ministério do Trabalho, um cadastro público de empresas acusadas de submeter trabalhadores a situações análogas à escravidão, onde o grupo foi incluído pelo próprio governo em 2009.
O êxito obtido pela Cosan poderá estimular outras empresas flagradas pelos fiscais do Ministério do Trabalho a negociar acordos semelhantes com o governo para evitar a exposição na lista, que impede o acesso a crédito público e afugenta fornecedores.
"Assim era melhor o governo acabar logo com a lista", disse a procuradora Ruth Vilela, que chefiou por 13 anos a Secretaria Nacional da Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho, e foi a principal responsável pela criação do cadastro. Ela saiu do governo no ano passado.
Para o frei Xavier Plassat, membro da Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo), grupo vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência, o acordo da Cosan provocará avalanche de pedidos similares.
A Cosan foi incluída na lista do Ministério do Trabalho por causa de um processo iniciado em 2007, quando os fiscais do governo encontraram problemas no tratamento que uma empresa terceirizada que prestava serviços à Cosan em Igarapava (SP) dava a seus funcionários.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, os 42 trabalhadores viviam em alojamentos precários, sem alimentação decente e transporte adequado, e haviam sido forçados a se endividar em estabelecimentos comerciais no local de trabalho.
CONTROLE EXTERNO
No ano passado, a Cosan recorreu à Justiça e conseguiu uma liminar que a excluiu da lista. Por causa do acordo fechado no fim do ano, a AGU (Advocacia-Geral da União) deixou de recorrer contra a decisão judicial que beneficiou o grupo Cosan.
Em troca, a empresa se comprometeu a aprimorar mecanismos internos de fiscalização e se submeter a controles externos.
Foi a Cosan que propôs o acordo à AGU. Conhecido como TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), ainda precisa ser homologado pela Justiça do Trabalho.
Foi a primeira vez que o governo fez um acordo desses. Empresas que foram excluídas da lista do ministério só tiveram sucesso após recorrer aos tribunais. Quase sempre, a AGU recorreu e derrubou as liminares.
O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, reconheceu que a preocupação dos defensores da lista é "legítima", mas afirmou que o acordo com a Cosan tem caráter "excepcional" e disse que o governo não pretende virar um "balcão de TACs".
A Cosan foi incluída na lista em 31 de dezembro de 2009 e conseguiu a liminar que a excluiu do cadastro oito dias depois. O juiz concluiu que as infrações apontadas não bastavam para caracterizar o trabalho escravo.
Em 2010, a Cosan conc ordou em desembolsar R$ 3,4 milhões por não cumprir três acordos semelhantes ao que assinou com a AGU, firmados com o Ministério Público do Trabalho. O dinheiro custeou serviços de saúde e equipamentos de proteção.
OUTRO LADO -Governo afirma que a negociação resolveu uma situação "excepcional"
DE BRASÍLIA
O governo afirmou que o acordo com a Cosan não afeta seu compromisso de combater o trabalho escravo no país nem indica uma tentativa de minar a "lista suja" do Ministério do Trabalho.
"A lista é um instrumento importante e será mantido. A AGU não vai virar um balcão de TACs", disse o chefe da AGU (Advocacia-Geral da União), Luís Inácio Adams, que negoc iou e assinou o acordo com a empresa.
Ele afirmou que o objetivo do TAC negociado foi resolver situação "excepcional".
Segundo Adams, a análise da autuação sofrida pela Cosan em 2007 mostra "fatores que indicam a não intencionalidade" em submeter trabalhadores a tratamento análogo à escravidão.
Entre esses fatores, ele disse, está o fato de que a responsabilidade pelas condições encontradas era de uma empresa terceirizada.
Adams disse haver "chances pequeníssimas" de outras empresas conseguirem acordo similar. "[As empresas] não têm direito inalienável de conseguir um TAC."
Por meio de sua assessoria, a Cosan afirmou que sua exclusão do cadastro do Ministério do Trabalho foi apenas referendada pelo governo, uma vez que a Justiça já reconhecera esse direito.
"A Cosan [...] foi excluída da lista [...] por meio de medida liminar proferida pelo Poder Judiciário em 8 de janeiro de 2010. Essa medida liminar foi confirmada por sen tença judicial. Dessa maneira, o próprio Poder Judiciário já confirmou a exclusão da Cosan [...] da referida lista", afirma a nota da empresa.
Sobre os pagamentos feitos no ano passado em decorrência do não cumprimento de acordos assinados com o Ministério Público do Trabalho, a empresa disse que fez as doações "no prazo acordado" e que a decisão "não implicou reconhecimento de violação aos termos". (JCM)
28-2-2011 – Blog do Sakamoto
Acordo mina programa de combate a trabalho escravo
E o governo assinou o acordão com a Cosan.
Adiantei, no dia 15 de fevereiro, que o governo federal estava fechando um acordo com o maior produtor de açúcar e álcool do mundo para que ele ficasse fora da “lista suja” do trabalho escravo em definitivo. Pois bem, hoje uma boa reportagem de João Carlos Magalhães, no jornal Folha de S. Paulo, traz a negociação. O título acima f oi tirado de lá.
A relação traz o nome das pessoas físicas e jurídicas flagrados com esse tipo de mão-de-obra por equipes de fiscalização, que ficam expostos por dois anos – período durante o qual devem provar que regularizaram a situação e não incorreram novamentre no crime. Durante esse tempo, não conseguem financiamentos públicos e sofrem boicotes de empresas públicas e privadas.
A Advocacia Geral da União, que tem sido célere em defender a “lista suja” diante de ações judiciais que tentam minar um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo (porque permite atacar o bolso, a parte mais sensível do corpo humano), acabou beneficiando a empresa em detrimento ao que vem fazendo desde então.
A pergunta é: por que? E a pedido de quem? Vamos analisar o caso.
A Cosan ganhou manchetes dentro e fora do país quando foi incluída no cadastro de empregadores flagrados com mão-de-obra escrava, conhecido como a “lista suja”, em 31 de dezembro de 2009 por conta da libertação de 42 pessoas em sua usina em Igarapava (SP). Até obter a liminar na Justiça do Trabalho, e depois uma decisão favorável em primeira instância, retirando-a da relação, viu o BNDES, o Wal-Mart, entre outras empresas, suspenderem o relacionamento com ela, além de quedas significativas nas bolsas de valores de São Paulo e de Nova Iorque. Empresas inseridas na “lista suja” permanecem na relação durante dois anos.
Um acordo semelhante começou a ser costurado no ano passado, fato que beneficiaria um grande produtor de algodão no Estado do Mato Grosso. Contudo, os ministros do Trabalho e Emprego e da Secretaria de Direitos Humanos, contrários a esse tipo de solução na época, fizeram gestões junto ao advogado geral para que o processo fosse repensado. Ao que tudo indica, as negociações com o grupo matogrossensse cessaram, mas a AGU as manteve com a Cosan desde então. É a primeira vez que essa tipo de acordo é feito.
Na Folha de S. Paulo, há um trecho extremamente elucidativo, quando o advogado geral da União, ministro Luís Inácio Adams, afirma que o acordão foi para resolver uma situação “excepcional”: Segundo Adams, a análise da autuação sofrida pela Cosan em 2007 mostra “fatores que indicam a não intencionalidade” em submeter trabalhadores a tratamento análogo à escravidão.
Não intencionalidade? O advogado está precisando conhecer melhor a jurisprudência sobre o assunto. Trabalho escravo não é fruto de uma patologia sádica de fazendeiros malvados e sim de uma consequência de um processo de corte de custos que transforma seres humanos em instrumentos descartáveis de trabalho na busca pelo lucro fácil. É a economia! “Vou ser mal, vou usar escravos” não é uma frase utilizada. “Vamos cortar custos, custe o que custar”, por outro lado, é largamente ouvida nessas situações. Desde 1995, foram cerca de 40 mil pessoas libertadas em todo o país. Todos os envolvidos afirmaram não saber que usavam escravos, mas também não se preocuparam em estar arrancando o couro dos trabalhadores. Ou seja, péssima justificativa a da AGU.
Segundo a Folha, Adams também disse que a responsabilidade pelas condições encontradas era de uma empresa terceirizada. Outra justificativa sofrível, que confirma que o caso não tem nada de incomum, pois esse é o padrão nas libertações de escravos no país, uma vez que a terceirização ilegal é porta de entrada para o trabalho escravo. Juízes do Trabalho consultados por este blog apontam que o uso de terceirizadas no caso de trabalho escravo é uma artimanha das grandes empresas de se verem livre da responsabilidade legal por seus empregados.
É difícil acreditar que a ordem tenha saído da própria AGU, ou seja, do advogado e não do cliente. Por trás de tudo está o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, articulado pelo governo federal e lançado em junho de 2009. É uma das meninas dos olhos do Palácio do Planalto, que tenta – através dele – garantir melhorias das condições nos canaviais e, consequentemente, a imagem de um combustível socialmente limpo dentro e fora do país. Até agora, o Compromisso está no aguardo de um processo vigoroso de monitoramento independente para se mostrar confiável. Enquanto isso, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, não é possível dizer que as condições de trabalho nos canaviais melhoraram nos últimos dois anos.
A Cosan tem todo o direito de entrar na Justiça caso se sinta prejudicada. Cabe à Justiça decidir e ao governo defender suas ações. Quando o governo deixa de exercer o papel que estava cumprindo, fica-se a dúvida. Por que?
Como ter a maior empresa de açúcar e álcool do mundo na “lista suja” e como signatária de um Compromisso avalizado pelo Planalto ao mesmo tempo? Pega mal, né?
Assim nascem os acordões. E assim os instrumentos de proteção da população viram vinagre.