Um Auditor-Fiscal do Trabalho negro incomoda muito mais
Sim, sou Auditor-Fiscal do Trabalho, negro, aprovado em concurso público (1995) quando não se falava de reservas de cotas para afrodescendentes, indígena e quilombolas.
Cansei de perceber expressões de surpresa diante do fato de que sou possuidor de diploma de três cursos superiores, duas pós-graduações, que escrevo artigos jurídicos (inclusive premiados), que possuo livros publicados, que sou oriundo do serviço público, passando pelas esferas municipal, estadual e federal.
Se a presença de um Auditor-Fiscal do Trabalho já é, por si só, capaz de gerar incômodo em determinadas empresas, a atuação de um Auditor-Fiscal negro em ambientes predominantemente não negros costuma provocar ainda maior resistência.
Em razão do pacto de branquitude, verifica-se, no âmbito das relações organizacionais, dificuldade de integrantes do grupo social historicamente dominante em reconhecer pessoas negras em condição de plena paridade, sobretudo quando estas ocupam posições de destaque e demonstram alto desempenho no cumprimento de metas institucionais.
Essa resistência torna-se ainda mais evidente no exercício de atribuições fiscalizatórias externas, quando o profissional negro detém competência para exigir a apresentação de documentos, solicitar informações de fornecimento obrigatório, requerer acesso irrestrito aos ambientes de trabalho ou determinar a adequação de práticas empresariais em desconformidade com a legislação trabalhista vigente.
Certamente é por conta desse pacto que ouvi a seguinte frase de uma preposta: “Você não tem direito de estar aqui”. Eu reflito: “Você” é quem? “Aqui”... é onde? Na verdade a frase esconde um racismo, cujo seu verdadeiro teor se interpreta da seguinte forma: “você” é um AFT negro, sua identidade fiscal não deve ser oficial”. “Aqui” é uma empresa em que todos os trabalhadores são brancos, inclusive os sócios.
É neste contexto de pacto da branquitude que não se pode admitir uma mulher negra na bancada de um dos maiores telejornais brasileiro, atuando em horário nobre. Da mesma forma que causa espécie saber que Ruy Barbosa, o Águia de Haia, era negro e que é igualmente escandaloso considerar um Jesus negro, pobre, que pisou o chão das periferias de um aldeia sem importância, oprimido por um Estado dominante.
A presença de um AFT negro incomoda a estrutura de poder do próprio órgão, formada por pessoas brancas, quando questões legais são discutidas e decididas com argumentação frágil, mal motivadas, concedendo a oportunidade do contraditório apenas para falsear o direito à ampla defesa.
Todavia, há casos em que decisões denegatórias não tem como se sustentar diante da estrita legalidade. Para não ficar no subjetivismo, três pautas em que tiveram mudança normativa e/ou procedimental: a) a questão de diárias, mediante a normatização do direito quando há deslocamento e pernoite em região limítrofe à sede da gerência; b) o direito de usar veículo oficial, independente da área ser próxima ou distante da sede; c) o direito ao gozo da licença capacitação.
O Dia da Consciência Negra é um momento para refletir que, quando vemos pessoas negras alcançando posições de destaque, isso não ocorre por acaso: trata-se de resultado de oportunidades concretas de estudo, formação e condições reais para competir em igualdade com os não negros.
É também um dia para reafirmar a necessidade de reparação histórica pelos séculos de escravização, cujas consequências permanecem visíveis no presente. É tempo de reivindicar políticas estruturantes que assegurem ao povo negro acesso efetivo aos espaços de poder e protagonismo, superando, de forma definitiva, a lógica social que ainda reproduz a senzala em novas formas.
É tempo em que um Auditor-Fiscal do Trabalho pode até incomodar, mas não pelo fato de ser negro.
Carlos Alberto Oliveira
Auditor-Fiscal do Trabalho/RJ