Omissões e vícios em treinamento levaram às mortes de trabalhadores. Integrantes da CPI consideraram o depoimento do AFT um dos mais importantes que já se teve na Casa
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga as concessionárias CEEE Equatorial e RGE (empresa do Grupo CPFL Energia), ouviu, nesta segunda-feira, 20 de outubro, o Auditor-Fiscal do Trabalho Otávio Kolowski Rodrigues, coordenador de Análise de Acidentes na Superintendência Regional do Trabalho no Rio Grande do Sul. A reunião, presidida pelo deputado Miguel Rossetto (PT), ex-ministro do Trabalho, foi realizada no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Estado.
Durante o depoimento, o Auditor-Fiscal relatou irregularidades sistemáticas em empresas terceirizadas do setor elétrico, com indícios de fraude em certificados de treinamento, falhas básicas de segurança e omissões em investigações internas. Segundo ele, esses problemas estão associados a uma série de acidentes fatais e gravíssimos envolvendo trabalhadores da distribuição elétrica no Rio Grande do Sul.
Otávio Kolowski informou que, em média, cerca de 400 trabalhadores morrem por ano no estado, desse total uma média de 23 mortes são no setor elétrico. Somente ele, ao longo da última década, investigou mais de 600 casos. Para o Auditor, o padrão de irregularidades revela falhas na gestão de riscos e na capacitação de equipes terceirizadas, que acabam comprometendo tanto a segurança dos trabalhadores quanto a qualidade do serviço prestado.
Fraudes e falhas de segurança
O Auditor-Fiscal explicou que os treinamentos obrigatórios previstos nas Normas Regulamentadoras NR-01, NR-10, NR-12 e NR-35 são condições mínimas para o exercício das atividades em campo. Os certificados devem comprovar carga horária, conteúdo, presença e qualificação do instrutor. Desde 2017 (quando foi aprovada a reforma trabalhista, lembrou, cabe também à empresa contratante garantir a segurança das equipes terceirizadas e auditar a autenticidade dos certificados e procedimentos.
No entanto, as fiscalizações revelaram certificados inidôneos, emitidos com datas anteriores à admissão dos trabalhadores, ausência de registros de presença e de material didático, além de incompatibilidades entre vínculos, locais e instrutores. Em muitos casos, as cargas horárias informadas eram irreais, incompatíveis com deslocamentos e períodos de trabalho.
As falhas não se restringem à documentação. Foram constatadas ausências de ordens de serviço e análises de risco, além da realização de tarefas sem teste de ausência de tensão, sem seccionamento e sem sinalização adequada. Equipamentos de proteção individual e coletiva também apresentaram deficiências graves, como falta de mangas isolantes, capacetes inadequados e uso incorreto de escadas apoiadas em cordoalhas.
Casos emblemáticos - Projecre e Setup
O Auditor citou casos emblemáticos que ilustram o padrão de irregularidades.
Na empresa Projecre, em Pelotas, antes da privatização da CEEE, entre 2021 e 2022, dois acidentes apresentaram o mesmo conjunto de falhas: ausência de ordem de serviço, indefinição sobre rede energizada ou desenergizada, deficiências em equipamentos e indícios de fraude nos certificados de treinamento. Ambos os casos resultaram em autos de infração confirmados administrativamente.
Após a privatização, a empresa Setup registrou três mortes e um acidente gravíssimo em 2023.
Em Capão da Canoa, uma equipe trabalhou à noite em cabos energizados sem comunicação adequada. A nova equipe presumiu que a rede estava desenergizada e não realizou o teste de ausência de tensão. “Em Capão da Canoa, bastaria o teste de ausência de tensão”, destacou o Auditor.
Em Bagé, outro trabalhador morreu durante um reparo realizado sem análise de risco, sem aterramento provisório e sem seccionamento, após a rede ser reenergizada durante a atividade.
Já em Palmares do Sul, a abertura de uma chave seccionadora sem ordem de serviço provocou um arco elétrico (como se fosse um raio) e pânico na equipe, o que evidencia a falta de treinamento dos trabalhadores. Um deles, cardiopata, sofreu infarto fatal pelo nível de estresse que passou. “A morte em Palmares do Sul foi a morte mais evitável que já vi em minha carreira”, lamentou Kolowski.
Em Porto Alegre, um acidente não fatal envolveu contato elétrico seguido de queda, provocado por método inadequado e uso incorreto de EPIs. O trabalhador ficou inapto para o trabalho.
Em todos esses episódios, destacou o Auditor, havia o mesmo padrão de falhas em certificados e procedimentos, ou seja, falta de qualificação desses trabalhadores. Ele informou que o Ministério Público do Trabalho (MPT), recebeu os relatórios da Fiscalização do Trabalho e conduziu diligências complementares. Foi quando intimada, a auditoria interna da companhia, inicialmente não apresentada, apareceu e confirmou que os certificados não refletiam a realidade dos treinamentos e descumpriam as normas de segurança.
Segundo informações posteriores, a empresa Setup reformulou seu programa de capacitação, o que teria interrompido, até o momento, a sequência de acidentes fatais e gravíssimos.
Situação na RGE
Sobre a RGE, Kolowski afirmou que, nas equipes próprias, não foram identificadas falhas de treinamento como causa determinante dos acidentes. Já nas empresas terceirizadas, a fiscalização constatou trabalhadores sem certificação adequada, embora sem evidências recentes de fraude.
Encaminhamentos da CPI
Durante a audiência, o Auditor-Fiscal informou que os relatórios do Ministério do Trabalho já foram encaminhados oficialmente à CPI. O colegiado também requisitou formalmente a auditoria interna da CEEE para juntada aos autos.
Kolowski se colocou à disposição da comissão para fornecer dados consolidados sobre acidentes, Comunicação de Acidente de Trabalho (CATs) e recortes por empresa e setor, mediante ofício que especifique o período e o escopo da solicitação.
Ele destacou ainda que há fiscalizações em andamento e que interdições já foram realizadas por inconsistências em qualificação e segurança.
Kolowski ainda reforçou o dever legal das empresas tomadoras de serviço de auditar seus contratados, garantir o cumprimento das Normas Regulamentadoras (NRs) e assegurar condições seguras de trabalho. Também defendeu investigações internas rigorosas a cada ocorrência, como forma de prevenir novos acidentes e proteger a vida dos profissionais do setor elétrico.
Integrantes da CPI consideraram o depoimento do AFT um dos mais importantes que já se teve na Casa.
Veja aqui a participação do AFT na CPI, iniciada aos 16 minutos de audiência.