Com informações Repórter Brasil
Dois trabalhadores domésticos foram resgatados de condições análogas às de escravo, em Planura (MG), na região do Triângulo Mineiro, durante operação realizada entre 8 e 15 de abril, por Auditores Fiscais do Trabalho. As vítimas foram aliciadas por meio do Facebook e do Instagram. Uma das vítimas teve o corpo tatuado com as iniciais “A.J”, que seriam de dois dos três patrões, como forma de demonstrar que se tratava de uma propriedade. Foram lavrados até agora oito autos de infração e a investigação foi iniciada, em janeiro, a partir de uma denúncia ao Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos.
Os Auditores Fiscais do Trabalho alcançaram duas vítimas submetidas a um processo de coisificação e dominação extremamente hediondo, em que a violência da submissão ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas foi agravada por relatos de abusos físicos, sexuais e psicológicos sistemáticos, impondo a elas um ambiente de exploração e controle absoluto.
Promessas falsas nas redes sociais
Os empregadores usaram as redes sociais para estabelecer contato inicial com pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica e afetiva, oferecendo promessas falsas de trabalho e acolhimento. Aproveitavam-se da confiança estabelecida em ambientes virtuais em comunidades LGBT+.
As investigações revelaram que o empregado doméstico, um homem homossexual, foi explorado por quase nove anos e era vítima de múltiplas violações: não recebia salário, não tinha registro em carteira, trabalhava em jornadas exaustivas sem férias ou descanso e vivia sob constante vigilância e ameaças. Os empregadores gravaram abusos sexuais, e os vídeos eram usados como instrumento de chantagem e controle emocional.
Em uma das gravações, ele aparece nu, com grampos presos ao corpo, enquanto os patrões assistem e tocam música ao fundo. Outro vídeo mostra uma tentativa de enforcamento. Também foi documentado um episódio em que foi obrigado a comer as próprias fezes após ter seu ânus mutilado e costurado de forma improvisada. As marcas físicas dessas violências foram periciadas e fotografadas.
“A tatuagem também representa um perverso indicador da submissão à escravidão a que ele estava submetido, pois funcionava como sinal de posse, de controle sobre o corpo da vítima. A imposição da tatuagem, feita com o intuito simbólico de marcar a vítima como subordinada, reforça a condição de completa sujeição aos empregadores”, afirma o relatório de fiscalização. Depois, por ordem dos empregadores, o trabalhador cobriu a tatuagem com outro desenho.
Também foi resgatada uma mulher trans de nacionalidade uruguaia, igualmente aliciada por meio das redes sociais. Em depoimento, relatou que, em julho de 2024, aceitou proposta de trabalho com salário de R$ 700 mensais. No entanto, do valor eram descontadas despesas de alimentação, moradia, internet e luz, restando-lhe cerca de R$ 100.
Ela trabalhou por seis meses para o trio, sendo que os três primeiros viveu com eles sob medo constante de ser submetida às mesmas agressões que o trabalhador. Segundo ela, os patrões diziam que ele era “o escravo da casa”. De tanto estresse, chegou a ter um acidente vascular cerebral enquanto trabalhava no local.
A jornada de trabalho era das 6h às 18h, sem pausas adequadas para refeições ou descanso. Apesar de ter conseguido alugar um imóvel por conta própria após três meses, o contrato estava em nome dos empregadores, o que a mantinha em dependência direta do trio.
Empregadores foram presos pela Polícia Federal
A Polícia Federal realizou a prisão em flagrante dos três homens identificados como empregadores, cujos nomes não serão aqui revelados para impedir a identificação das vítimas dada a situação de extrema violência a que foram submetidas. A reportagem tentou contato com as defesas dos três, mas não teve sucesso.
Os trabalhadores receberam atendimento médico, psicológico e assistência social. Foram lavrados oito autos de infração. Os dois vão receber três meses do seguro-desemprego especial pago às vítimas de trabalho escravo.
Verbas rescisórias
De acordo com o cálculo preliminar da fiscalização, considerando apenas o trabalhador, são mais de R$ 234 mil em verbas salariais devidas pelos empregadores. O Ministério Público do Trabalho está atuando para garantir os direitos das vítimas.
A investigação foi iniciada a partir de uma denúncia ao Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos em janeiro. A operação verificou que o local também abrigava uma escola particular, onde foi encontrada uma menina de 12 anos em situação de trabalho infantil, realizando tarefas de limpeza duas vezes por semana. Interrogada, separadamente, ela confirmou que o trabalhador também trabalhava ali havia anos, embora estivesse desaparecido havia cerca de uma semana.
A partir dessa revelação, a fiscalização o localizou trabalhando em um supermercado local. A vítima, inicialmente reticente, confirmou que havia sido levada do interior do Nordeste para Minas Gerais após promessas falsas de emprego por meio de redes sociais. Desde então, passou a viver com os três empregadores, exercendo funções domésticas e de limpeza em suas empresas, sem qualquer remuneração.
O relatório utiliza o termo “coisificação” para descrever o processo de desumanização a que o trabalhador foi submetido. Segundo os Auditores Fiscais do Trabalho, ele foi transformado em objeto para satisfação de desejos dos patrões, privado dos direitos mais elementares, como liberdade, dignidade, repouso e remuneração.
Além dos Auditores Fiscais do Trabalho participaram da operação procuradores do Ministério Público do Trabalho e agentes da Polícia Federal. As vítimas foram retiradas da cidade e estão recebendo assistência das clínicas de enfrentamento ao trabalho escravo da Unipac (Centro Universitário Presidente Antonio Carlos) e da UFU (Universidade Federal de Uberlândia).