Sinait denunciou o retrocesso na política de erradicação da escravidão. O tema foi abordado por vários participantes e valorizado pelos comissionados da CIDH
Por Nilza Murari
O Sinait participou na tarde de segunda-feira, 23 de outubro, de audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dentro da programação do 165º Período de Sessões, realizado em Montevideo, no Uruguai. A audiência foi requerida pelas centrais sindicais brasileiras Central Única dos Trabalhadores – CUT, Nova Central Sindical dos Trabalhadores – NCST e União Geral dos Trabalhadores – UGT, que fizeram denúncia conjunta à CIDH sobre a reforma trabalhista e a terceirização no Brasil. A audiência com duração de uma hora foi aberta ao público, pessoas de várias nacionalidades e formações, que lotaram a sala, evidenciando a importância do tema não só para o Brasil, mas para a região latinoamericana.
Presidiu a sessão a comissionada Esmeralda Arosemena de Troitiño. Ao seu lado, o comissionado José de Jesus Orosco, o relator James Cavallaro e a relatora especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, Soledad Garcia Muñoz, estreando em suas funções.
As centrais convidaram o Sinait, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - Anamatra e o Ministério Público do Trabalho – MPT para compor a bancada da sociedade civil e dividir os 15 minutos de fala a elas destinados. A CUT foi representada por Jandyra Uehara, secretária nacional de Políticas Socias e Direitos Humanos. A NCST teve como interlocutor Geraldo Ramthun, diretor de Relações Internacionais, e a UGT, Lourenço Pereira do Prado, secretário de Relações Internacionais. A juíza do Trabalho Noêmia Porto e o procurador do Trabalho Thiago Gurjão, representaram, respectivamente, a Anamatra e o MPT.
O Sinait foi representado pelo diretor Bob Machado. Também acompanhou a audiência a Auditora-Fiscal do Trabalho Dalva Coatti, da diretoria da Delegacia Sindical do Paraná. Inspetores do Trabalho do Uruguai, especialmente o presidente da Confederação Iberoamericana de Inspetores do Trabalho – CIIT, Sérgio Voltolini, assistiram à sessão e foram levar sua solidariedade à bancada de sindicalistas brasileiros.
Os sindicalistas frisaram vários aspectos da reforma, em manifestações complementares. Jandyra Uehara afirmou à CIDH que o governo não tem diálogo com a sociedade e violou instrumentos internacionais de Direitos Humanos. Entre os retrocessos da reforma, ela destacou que haverá impacto no acesso à Justiça, na saúde dos trabalhadores, na negociação coletiva e no valor da vida. Ressaltou a situação particular das mulheres, que ocupam os trabalhos mais precários, irregulares e sem proteção. Pelas novas regras será permitido que mulheres grávidas e lactantes trabalhem em locais insalubres, o que era expressamente proibido.
Uehara lembrou que a Organização Internacional do Trabalho – OIT analisou a reforma e manifestou-se sobre o caráter violador de direitos humanos, por possibilitar que uma negociação coletiva ou individual se sobreponha à lei, ainda que em desfavor dos trabalhadores, podendo ser usada para retirar direitos e diminuir a proteção social. Regressão, para ela, é a palavra que sintetiza a reforma. Finalizando, Jandyra Uehara solicitou que a CIDH faça uma visita ao Brasil, para verificar de perto a situação real das relações de trabalho e os ataques cotidianos aos direitos humanos. Geraldo Ramthun disse que a reforma transformou trabalhadores em mercadoria e violou a Constituição Federal em seu artigo 1º, que traz princípios como a dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho. Citou que as Convenções 29 e 81 da OIT, entre outras, estão sendo violadas. Tratam, respectivamente, do trabalho forçado, da Inspeção do Trabalho e do trabalho infantil. Destacou que “a desestruturação do Ministério do Trabalho e a falta de recursos para a fiscalização, somada à edição da Portaria nº 1.129/2017, fere de morte a Convenção 81 e tira a proteção dos trabalhadores”. O negociado sobre o legislado e a terceirização sem limites configuram, para a NCST, regressão.
A violação do acesso à Justiça gratuita, previsto na Constituição Federal, foi um dos destaques da fala de Lourenço Prado, entre outras mazelas da reforma trabalhista citadas anteriormente. Ele denunciou o ataque à organização sindical, com a retirada da contribuição sindical, por exemplo, que fragiliza a atuação dos sindicatos. Vice-presidente da Anamatra, Noemia Porto, afirmou que a entidade sempre denunciou as violações da reforma trabalhista e juízes que se manifestaram veementemente contra ela estão sendo ameaçados e retaliados. Entre as graves violações identificadas a magistrada destacou prejuízos à saúde dos trabalhadores e ao primado da igualdade entre os trabalhadores, com possibilidades de discriminação. Denunciou a intenção do governo e de entidades patronais de extinguir a Justiça do Trabalho, uma “instituição que sobreviveu inclusive à ditadura”, ressaltou. Um projeto de lei está prestes a ser votado com esse conteúdo. Noemi entregou à Comissão a Nota Técnica produzida em conjunto com o Sinait, Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT e Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas – Abrat, que aponta várias inconstitucionalidades da reforma trabalhista. O procurador do Trabalho Thiago Gurjão lembrou que o MPT sempre se posicionou contrário à reforma, manifestando-se em várias oportunidades e de diferentes maneiras, apontando as inconstitucionalidades e violações a normas internacionais, incluindo a Convenção Americana. Na visão do MPT os mais atingidos serão os trabalhadores mais pobres, especialmente quanto ao acesso à Justiça gratuita. Citou, como “último ato da tragédia de retrocessos sociais”, a recente edição da Portaria nº 1.129/2017, ato unilateral do Ministério do Trabalho, que pretende rever de forma restritiva o conceito de trabalho escravo e comprometendo as políticas públicas de combate à prática. O MPT considera que o governo viola acordos firmados internacionalmente e, por isso, é fundamental que a CIDH monitore a situação de direitos humanos e fundamentais no mundo do trabalho no Brasil.
Posição dos Auditores-Fiscais do Trabalho
Último a se manifestar pela bancada da sociedade civil, Bob Machado ressaltou que os Auditores-Fiscais do Trabalho são as primeiras autoridades administrativas na linha de defesa dos direitos sociais dos trabalhadores no Brasil. Disse que o Sinait considera que a reforma trabalhista terá como resultado a retirada de direitos dos trabalhadores com a redução de salários e do número de vagas em tempo integral.
Um dos itens que podem ser flexibilizados é a jornada de trabalho, um dos mais autuados pela fiscalização – mais de 57 mil autuações nos últimos anos. A reforma permite que trabalhadores com contrato por tempo indeterminado sejam trocados por trabalhadores autônomos, retirando todos os direitos previstos pela Constituição. Apontou também que a terceirização irrestrita precariza o trabalho. Trabalhadores terceirizados recebem salários menores e trabalham mais horas. De cada dez trabalhadores resgatados do trabalho escravo, oito são terceirizados. A mesma proporção vale para os acidentes de trabalho.
Por fim, fez a denúncia do Sinait sobre a publicação da Portaria 1129/2017, que “põe fim à política nacional de erradicação do trabalho escravo e impõe limites legais à atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho”. Bob Machado disse que o propósito da Portaria é proteger empresários que exploram mão de obra escrava e que as regras ferem convenções internacionais.
O governo
Além da bancada da sociedade, representada pelas entidades sindicais e MPT, a audiência contou com cinco representantes do governo brasileiro – Alexandre Ghisleni, diretor Departamento de Direitos Humanos do Itamaraty; Daniel Leão, assessor da Diretoria de Direitos Humanos do Itamaraty; Admilson Santos, representando o ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira; Antônio Neto, assessor parlamentar do deputado Rogério Marinho, que foi o relator da reforma trabalhista na Câmara; e João Guilherme Maranhão, assessor da Embaixada do Brasil no Uruguai.
Ghisleni justificou a proposta da reforma em pesquisas e estatísticas que apontaram a necessidade de modernização da legislação trabalhista para a retomada do crescimento econômico e a geração de empregos. Na visão do governo houve ampla discussão do projeto em audiências públicas, seminários e reuniões. Defendeu o contrato de trabalho intermitente como uma grande oportunidade de trabalho para jovens, mulheres e idosos, que é adotado em diversos países, e que transformará empregos informais em contratos formais de trabalho, com todos os direitos garantidos e gerando muitos postos de trabalho.
O diplomata abordou ainda a terceirização, afirmando que as leis aprovadas regulamentam esta forma de contratação no país, antes cercada por insegurança jurídica. O entendimento exposto é de que há dispositivos que protegem os trabalhadores e restringem abusos. Igualmente, encontra vantagens na prevalência do negociado sobre o legislado, prevendo equiparação de forças entre a representação dos trabalhadores e dos empregadores.
Questionamentos dos comissionados
Na etapa de questionamentos dos comissionados da CIDH, James Cavallaro centrou-se na Portaria 1.129/2017. Perguntou aos representantes do governo se as condenações da Organização dos Estados Americanos – OEA em relação a casos de trabalho escravo estão sendo cumpridas e, ainda, quais os órgãos foram consultados para a edição da Portaria, já que existe uma clara divergência entre as ações para a erradicação do trabalho escravo e esta norma.
Cavallaro ficou sem resposta objetiva do governo, que se limitou a ler a nota já divulgada pelo Ministério do Trabalho no dia 16 de outubro a respeito do assunto. O Sinait, entretanto, respondeu que a Secretaria de Inspeção do Trabalho não foi consultada em nenhum momento. Por não concordar com a Portaria, o Secretário substituto emitiu orientação à categoria para que não cumpra uma portaria que é claramente ilegal. Também foi produzida uma Nota Técnica apontando as ilegalidades e inconstitucionalidades do texto. A posição do Sindicato e dos Auditores-Fiscais do Trabalho é pela revogação da Portaria.
A relatora especial Soledad Muñoz indagou sobre quais impactos terá a reforma trabalhista sobre os direitos humanos dos trabalhadores. Quis saber ainda se e como o governo absorveu as propostas dos trabalhadores nas instâncias de discussões alegadas pelo governo como amplas. Bob Machado, Noemia Porto e Thiago Gurjão foram unânimes em afirmar que nenhuma das propostas levadas pelas entidades foram acolhidas, apesar de toda a argumentação e demonstração de inconsistências e inconstitucionalidades. O governo, entretanto, alegou, em contrário, que foram apresentadas mais de 1.500 emendas e que cerca de 900 foram incorporadas ao texto.
Neste ponto, o Sinait faz aqui a observação que não foi possível fazer no curso da audiência. As emendas aceitas na Câmara dos Deputados elevaram de sete para mais de cem alterações na CLT, todas no sentido de retirar direitos dos trabalhadores. As propostas dos trabalhadores não foram acolhidas.
Esmeralda Troitino pontuou que a bancada da sociedade civil destacou um princípio importantíssimo, que é o da não regressividade de direitos. Por isso, perguntou à bancada do governo como o Estado avalia esse princípio diante da reforma trabalhista. Externou ainda a preocupação com o impacto da reforma sobre a Justiça do Trabalho.
A resposta de Admilson Santos foi de que a lei é resultado de um consenso social, do que já vinha sendo praticado em alguns setores. Para ele, não há hipossuficiência do sindicato laboral em relação à empresa, estariam em igualdade de condições numa negociação coletiva.
Acompanhamento
Terminada a sessão, Sinait e demais entidades da bancada da sociedade civil entregaram mais documentos aos comissionados a fim de fornecer mais subsídios ao relatório da CIDH, ampliando o que não foi possível detalhar na audiência.
O pedido da CUT para que a CIDH venha ao Brasil e conheça mais de perto a realidade brasileira deverá ser reforçada pelas entidades presentes.
Bob Machado e Dalva Coatti avaliaram como muito importante e positiva a participação do Sinait na audiência pública. “A preocupação dos comissionados com questões como a regressividade de direitos e o combate ao trabalho escravo como violações dos direitos humanos ficou evidente. O governo não foi convincente nem apresentou nada de novo”, disse o diretor do Sindicato.