Declaração de policial militar está equivocada e pode amedrontar trabalhadores, diz Auditor-Fiscal do Trabalho. Falta de participação da fiscalização prejudica a caracterização da cadeia produtiva e identificação dos infratores
Bolivianos libertados no dia 12 de outubro de situação análoga à de escravos em oficina de costura em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, foram ameaçados de deportação por Polícia Militar Estadual. A declaração foi dada em entrevista à Globo News e reproduzida em matéria no jornal eletrônico Repórter Brasil.
De acordo com o Auditor-Fiscal do Trabalho Renato Bignami, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo – SRTE/SP, a informação está errada. “Como não participamos da operação não há como apresentar mais detalhes. No entanto, a informação é equivocada, porque os imigrantes resgatados em situação de escravidão estão protegidos por Resolução”.
Instrumentos legais
Bignami se refere à Resolução Normativa nº 93 – RN do Conselho Nacional de Imigração – CNIg, que determina que trabalhadores imigrantes em situação vulnerável devem ser amparados pelas autoridades, podendo inclusive requerer o visto de permanência no Brasil. A norma foi criada em 2010 com o objetivo de proteger e incentivar os estrangeiros vítimas de tráfico de pessoas e de trabalho escravo a denunciarem seus exploradores sem terem medo de ser forçados a deixar o país ao contatar autoridades brasileiras. A garantia de proteção para quem está vulnerável visa fortalecer denúncias e preservar direitos básicos dos que foram submetidos à exploração.
Ele lembra ainda que, igualmente, a Instrução Normativa nº 91, de 2011, da Secretaria de Inspeção do Trabalho - SIT, sobre os procedimentos a serem respeitados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho no combate ao trabalho escravo, determina que os trabalhadores migrantes não nacionais, ainda que em situação migratória irregular no país, deverão ser encaminhados para fins de regularização migratória com base na citada RN 93, do CNIg.
É o que diz textualmente a IN 91, em seu art. 6º, § 2º: “Serão observados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, na fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo, em qualquer atividade econômica urbana, rural ou marítima, e para qualquer trabalhador, nacional ou estrangeiro, os procedimentos previstos na presente Instrução Normativa”.
A RN 93 foi emitida após diversas operações realizadas em São Paulo em que havia efetivamente o risco de deportação dos estrangeiros por parte da Polícia Federal. Temendo os efeitos negativos dessa ameaça, os Auditores-Fiscais envolvidos no combate ao trabalho escravo no Estado apresentaram diversos argumentos ao Ministério do Trabalho e Emprego, provocando-o para que emitisse a RN 93, publicasse a IN 91 e determinasse a emissão da Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS provisória, assim como o formulário do Seguro-Desemprego do trabalhador resgatado de condição análoga à de escravo, a todo e qualquer trabalhador migrante não nacional, ainda que esteja em situação migratória irregular. Por fim, Renato Bignami lembra do Protocolo de Palermo, aprovado pelo Decreto nº 5.017, de 2004, que também possui um dispositivo de natureza similar, ao indicar em seu art. 7º:
“Estatuto das vítimas de tráfico de pessoas nos Estados de acolhimento
O Auditor-Fiscal observa que no Direito Internacional aplicado às migrações, especialmente no caso de migrantes econômicos e refugiados, vigora o princípio do "non-refoulemant" ou “não devolução do migrante”, que poderia facilmente ser aplicado aos casos de vítimas de tráfico de pessoas e trabalho escravo.
Flagrante comprometido
Durante a operação realizada no dia 12 de outubro, a equipe do 39º Batalhão da Política Militar, responsável pelo resgate dos 15 imigrantes, prendeu um boliviano chefe da oficina, enquadrado no artigo 149 do Código Penal pelo crime de trabalho escravo, que prevê pena de dois a oito anos de prisão. As vítimas disseram que trabalhavam 16 horas por dia e recebiam somente 500 reais por mês. Além disso, relataram também a retenção de documentos, o que as impedia de sair do local.
Para Bignami, é lamentável que os Auditores-Fiscais do Trabalho não tenham participando da operação. “A PM deveria ter feito contato com os Auditores-Fiscais do Trabalho e a Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo - Coetrae/SP. Ficamos sabendo do caso posteriormente, pela imprensa, o que impede o flagrante, situação importante para a construção da ocorrência”. Além disso, segundo ele, “a ausência da fiscalização dificulta a aplicação dos direitos trabalhistas, porque a presença dos Auditores-Fiscais garante o preenchimento imediato das guias dos resgatados e dos cálculos das verbas rescisórias”.
O procedimento, na visão dele, impediu o mapeamento da cadeia produtiva. “Quando os Auditores-Fiscais estão em operação, investigam as conexões da produção com o objetivo de punir os demais responsáveis pela situação encontrada”. Neste caso, “não haverá a responsabilização civil e trabalhista de eventuais empresas beneficiárias”.
Ele avalia ainda que falta coordenação entre as autoridades paulistas que combatem o crime. “Problema que poderia ser resolvido com a aprovação do Plano Estadual para Erradicação da Escravidão”. As entidades que fazem parte da Coetrae/SP finalizaram há mais de um ano a minuta do Plano que conta, entre outras, com medidas de apoio à formação e capacitação de todos os agentes públicos que combatem trabalho escravo em São Paulo. A minuta, entretanto, segundo informa Bignami, “encontra-se praticamente parada no gabinete do governador e jamais recebemos qualquer informação quer seja de seu gabinete ou mesmo da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, que sedia a Coetrae/SP”.
Ameaça
A declaração do policial militar sobre a possível deportação dos trabalhadores bolivianos, na opinião de Renato Bignami, reforça a coerção perpetrada por intermediários em casos de trabalho escravo de migrantes em situação irregular. “Os aliciadores ameaçam os trabalhadores dizendo que, se porventura vierem a denunciar a violência a que estão sendo submetidos, em uma relação de submissão a trabalho escravo, certamente serão deportados pela polícia”.
Criar um ambiente de recepção e acolhimento de vítimas, pouco a pouco consolidando a confiança dessa comunidade para que denunciem os maus tratos a que são submetidos, com a certeza de que nada de mal lhes acontecerá, foi um longo caminho, agora abalado. “A fala desse policial, equivocada, é um desserviço, pois tem o potencial de criar mais pânico entre os trabalhadores estrangeiros, dificultando a comunicação com as autoridades e a estratégia geral de combate ao trabalho escravo no Estado de São Paulo”, conclui Bignami.
Trabalho estrangeiro
Para a Auditora-Fiscal do Trabalho Jacqueline Carrijo, coordenadora do Grupo Técnico de Trabalho Estrangeiro – GTTE constituído no âmbito da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo - Conatrae, encabeçado pelo Sinait, a situação e o comentário do representante da Polícia Militar foi uma surpresa. “A proteção para os estrangeiros em situação vulnerável no país já está pacificada e a declaração da Polícia Militar de São Paulo foi imprevisível”.
Segundo Jacqueline, o GTTE produziu e divulgou no ano passado o Manual de Recomendações de Rotinas de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo de Imigrantes. “A publicação traz as rotinas de fiscalização e esclarecimentos do papel de cada instituição envolvida nas ações de combate ao trabalho escravo de imigrantes, bem como esclarecimentos sobre os direitos desses trabalhadores”.
Auxilia ainda os Auditores-Fiscais do Trabalho, integrantes do Ministério Público, Polícias Federal, Estadual e Municipal, Juízes e representantes da sociedade civil organizada. “O Manual foi discutido incansavelmente pelas instituições, inclusive pelas polícias e é uma surpresa que ainda haja esse tipo de confusão”, declara Jacqueline.
Polícia Federal
A Repórter Brasil informou que, de Brasília, o chefe nacional do Serviço de Repressão ao Trabalho Forçado da Polícia Federal, delegado Érico Barboza Alves, alegou que a comunicação feita pela PM está equivocada e garantiu que as vítimas não correm o risco de serem forçadas a deixar o país. “Se for verificada a condição de escravidão, existe um amparo que é feito, independente de ser estrangeiro ou não”, afirma, garantindo que os trabalhadores em questão não terão de pagar qualquer multa.
A Polícia Federal declarou que os trabalhadores bolivianos encontrados na operação foram liberados após prestar depoimento e que foi aberto um inquérito para apurar o caso, que é de competência federal por envolver estrangeiros.
Acesse aqui o Manual de Recomendações de Rotinas de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo de Imigrantes.
Leia, também, matéria sobre o resgate dos bolivianos no dia 12 de outubro.
No dia 16 houve outro resgate, também sem a participação de Auditores-Fiscais do Trabalho.