Sinait acompanha, no Rio Grande do Norte, operativo de Auditores-Fiscais do Trabalho no combate ao trabalho infantil. A castanha de caju, iguaria apreciada pelos turistas, é fruto do trabalho de crianças
Sinait acompanha, no Rio Grande do Norte, operativo de Auditores-Fiscais do Trabalho no combate ao trabalho infantil. A castanha de caju, iguaria apreciada pelos turistas, que pagam caro pelo produto, é fruto do trabalho de crianças, que quase nada ganham
Por Aletheia Patrice, jornalista do Sinait
O Brasil se comprometeu com a Organização Internacional do Trabalho - OIT em erradicar o trabalho infantil até 2020. Mas na comunidade do Amarelão Buriti, na zona rural do município de João Câmara, no Rio Grande do Norte, essa realidade parece distante para o pequeno Pedro*, que acorda todos os dias às três da manhã para ajudar a família na quebra da castanha de caju.
Para uma mãe cuidadosa que não deixa o filho nem chegar perto do fogão ou de uma tomada elétrica, por exemplo, a unidade de produção familiar para a quebra artesanal da castanha é a visão de um verdadeiro inferno. Crianças ao redor de altas chamas de fogo e tendo contato direto com as castanhas após serem queimadas – que mais se assemelham a um carvão em brasa – sem nenhuma proteção para as mãos ou para os olhos.
Mesmo assim, Pedro* parecia satisfeito com as condições em que vivia. Quando a reportagem do Sinait perguntou se ele não queria fazer algo melhor no futuro, o menino respondeu, secamente, sem tirar os olhos das castanhas que quebrava: “não”. E ainda disse que gostava do que fazia.
A mãe de Pedro*, Ana Paula*, disse que os quatro filhos estudam, porém, precisam trabalhar junto com ela para garantir, em média, uma renda mensal de R$ 400. Ela admitiu aos Auditores-Fiscais do Trabalho, que estão realizando um operativo para constatar trabalho infantil no município até o dia 8 de junho, que as crianças ficam cansadas ao conciliar as duas atividades. As ações estão sendo acompanhadas in loco pela primeira vez por uma equipe de jornalismo do Sinait.
A mãe de Pedro* contou aos Auditores-Fiscais que está sem receber o benefício do Programa Bolsa Família há dois anos por falta de renovação do cadastro e afirmou não ter casa própria. Segundo ela, várias gerações da sua família trabalharam na quebra da castanha, começando pela sua avó. Ana Paula* teve o primeiro filho com treze anos e sua filha de 16 está grávida.
Raimunda*, mãe de oito crianças, relatou que a família também precisa que todos se envolvam na atividade para garantir o sustento, mas tenta convencer a filha Aline*, já adolescente, a frequentar a escola. “Quero um futuro melhor para ela”. Aline* disse não sentir vontade de estudar, por isso não quis se matricular esse ano. “É difícil”, falou. Mas pretende voltar. “Eu quero trabalhar numa cidade”. Ela ainda não sabe qual sonho quer realizar ou a profissão que pretende seguir.
Economia Familiar
O operativo foi realizado pela equipe de Auditores-Fiscais do Trabalho do Grupo de Combate ao Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Norte – SRTE/RN. Ações semelhantes estão sendo intensificadas em todo o país em alusão ao dia 12 de junho, quando é celebrado o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil.
De acordo com a Auditora-Fiscal do Trabalho Marinalva Dantas, que coordena o operativo no RN, a atuação da fiscalização na quebra artesanal da castanha nestas localidades não é punitiva por se tratar de economia familiar - sem relação direta entre patrão e empregado. O planejamento para o operativo começou pelo mapeamento dos pontos com maior concentração de crianças trabalhando, realizado durante visitas prévias.
Para a ação do dia 6, a equipe foi às comunidades do Amarelão Buriti, Assentamento Santa Terezinha 1 e Assentamento Santa Terezinha 2, a cerca de 10 quilômetros de João Câmara. Foi a primeira vez que o Grupo realizou a visita de madrugada. Por volta de 5 horas da manhã, a maioria das crianças encontradas já estava quebrando castanhas há mais de duas horas.
Ao chegarem, os Auditores-Fiscais realizaram entrevistas com as famílias para saber quantas crianças estão trabalhando, se elas frequentam a escola, se sabem ler, se recebem benefícios do governo.
Cadeia produtiva
Marinalva afirma que a situação dos quebradores de castanha de João Câmara é preocupante porque o trabalho infantil ocorre todos os dias e a quantidade de crianças na atividade não diminui. Para ela, a única solução é mudar a cadeia produtiva. “Precisaríamos, junto com outros órgãos, eliminar os atravessadores, que pagam a essas famílias um valor muito menor do que merecem. Por isso, as crianças são usadas para aumentar a produção e a renda”.
A produção funciona assim: as famílias da zona rural de João Câmara recebem dos atravessadores sacos com as castanhas verdes, da forma como foram retiradas do caju. Então, dentro de pequenos galpões cobertos por telhas, essas castanhas são colocadas no fogo em um tonel de ferro, que é furado em várias partes. Durante um tempo, os castanheiros mexem o tonel com um pau comprido até as castanhas queimarem por completo. Após jogarem água para apagar o fogo, as castanhas – agora com a aparência de carvão – são entregues imediatamente para serem quebradas. Aí entram as crianças e todos os riscos que correm.
Elas quebram as castanhas sem nenhum tipo de proteção, com um pequeno porrete de ferro ou de madeira e ainda podem ter contato com um ácido liberado na queima, o LCC (cardol e cardanol). Ficam com as mãos pretas e, provavelmente, queimadas, por conta da temperatura à qual são submetidas. Com a maior naturalidade, Ana Paula*, a mãe de Pedro*, conta que usa água sanitária para limpar as mãos do filho. “Mas só duas vezes na semana”. De acordo com Marinalva, o produto causa danos sérios à pele.
Riscos
Durante o operativo, o Auditor-Fiscal José Roberto Moreira, descreveu os principais riscos à saúde e segurança que as crianças e adultos correm enquanto quebram a castanha. Segundo ele, os assentos são inadequados porque não possuem encosto. “A criança, quando trabalha nisso durante muito tempo, pode ficar deformada, com problemas na coluna”.
Todos os assentos são improvisados e algumas mesas são construídas usando tijolos e tampa de esgoto como base. Sobre o contato com a castanha logo após sair do fogo, José Roberto disse que isso deve ser mais bem avaliado, pois ainda não existem normas que indiquem a distância mínima que o trabalhador deve ficar do calor e qual a intensidade máxima das chamas. “O ideal seria ter alguma proteção próximo ao fogo”.
Ele acrescenta que a higiene é precária e os tetos dos galpões são muito baixos. “Qualquer descuido, a pessoa pode bater a cabeça numa ponta de vara, de estaca. Tudo isso contribui para as dificuldades no trabalho”.
Prejuízos à aprendizagem
De acordo com a assistente social e técnica da SRTE/RN, Célia Menezes, as crianças que quebram castanhas na zona rural de João Câmara não conseguem sair dessa situação. Ela acompanha as ações da Auditoria-Fiscal do Trabalho há mais de 10 anos nas localidades e algumas crianças que já entrevistou, nesse período, se tornaram adolescentes e até já são pais e mães. “Essas crianças deveriam estar na escola, brincando nas horas livres e tendo um desenvolvimento normal. Mas o que constatamos é que grande parte delas param de estudar entre 15 e 17 anos, conformados em quebrar castanha”.
Célia considera que uma das consequências da tentativa das crianças e adolescentes conciliarem trabalho e estudo na quebra da castanha é o alto índice de analfabetismo nos locais onde a atividade é exercida. “Há muitos prejuízos ao desenvolvimento intelectual, porque grande parte deles passa o dia inteiro no trabalho e estuda à noite. A escola se torna um momento de descanso ao invés de um ambiente de aprendizado”.
Afastamento
Após a constatação da ocorrência de trabalho infantil, o Grupo de Combate ao Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Norte – SRTE/RN fez um levantamento de dados e das principais necessidades das famílias ouvidas. Depois, encaminhou Termos de Afastamento de Trabalho ao Conselho Tutelar do município de João Câmara, ao Ministério Público Estadual e à Secretaria Municipal de Ação Social. Também entregou Termos de Providência para as necessidades das famílias ouvidas durante a ação aos mesmos órgãos.
Até o dia 12 de junho, o Grupo vai tomar outras providências, e no dia 11, será realizada uma mesa redonda na Procuradoria Regional do Trabalho, em Natal, para tratar da situação das crianças envolvidas na quebra da castanha em João Câmara. A secretária municipal de Ação Social, Redivan Rodrigues, e o prefeito, Ariosvaldo Targino de Araújo, já foram convidados.
*Nomes fictícios para preservar o anonimato dos entrevistados.