O religioso, que representa a Comissão Pastoral da Terra na Conatrae, fez avaliação dos últimos dados sobre a prática no país
É parte da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra – CPT divulgar, a cada trimestre, um conjunto de dados a respeito do tema, baseado, em sua maioria, em números levantados após as operações realizadas pelos Auditores-Fiscais do Trabalho que compõem os Grupos Móveis de Fiscalização. Este ano, até 10 de dezembro, 2.187 pessoas foram resgatadas em condições análogas à escravidão. Os números de 2012 não são conclusivos porque algumas operações ainda estão em andamento.
Em entrevista ao Sinait, Frei Xavier Plassat, que representa a CPT na Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – Conatrae, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH, repercutiu a constatação de alguns dados. Entre eles, o primeiro lugar para a Região Norte em relação ao número de resgatados, 952 até a data do levantamento.
Ele também falou sobre a importância da Fiscalização do Trabalho para o combate à prática no Brasil e elogiou o projeto “Movimento Ação Integrada”, do Sinait em parceria com a Organização Internacional do Trabalho – OIT, cuja iniciativa piloto, no Mato Grosso, alcançou sucesso na inserção de egressos de condições análogas à escravidão em cursos de capacitação e no mercado de trabalho. Para o religioso, esta pode ser uma das soluções para reduzir a reincidência dos trabalhadores ao combater as raízes do problema.
Leia aqui a matéria publicada no site do Sinait sobre o levantamento da CPT.
Veja, abaixo, a entrevista com o Frei Xavier Plassat na íntegra.
Sinait: Quais as principais preocupações da CPT com esse levantamento sobre trabalho escravo?
Frei Xavier Plassat: Desde os primórdios da luta contra o trabalho escravo, a CPT tem contribuído na produção de dados fidedignos sobre a realidade deste combate, consciente de que precisamos conhecer criteriosamente onde e como acontece o trabalho escravo e com que intensidade. Também como o enfrentamos concretamente a partir, principalmente, das denúncias produzidas por trabalhadores, verificando o grau de atendimento a essas denúncias e a intensidade do esforço de fiscalização engajado, sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, com a participação do Ministério Público do Trabalho - MPT e da Polícia Federal. Para melhor combatê-la, precisamos concentrar nossos esforços onde for mais necessário, identificando as atividades, as regiões e as comunidades mais afetadas. Ao publicarmos periodicamente – em média a cada trimestre – os dados do trabalho escravo no Brasil, buscamos mobilizar sociedade e autoridades à persistência de graves desafios para a erradicação do trabalho escravo: os números custam a recuar, mesmo depois de terem sido resgatadas quase 45.000 pessoas no país desde 1995. De fato, erradicar o trabalho escravo exige muito mais que “simplesmente” (e não é nada simples fazê-lo) libertar pessoas das garras da escravidão.
Sinait: Quais os avanços constatados e no que a Fiscalização do Trabalho contribui para isso?
Frei Xavier Plassat: Um dos principais avanços nos últimos anos foi ter levado uma fiscalização qualificada nos moldes do Grupo Móvel até atividades e regiões onde não se tinha o costume de fazê-lo, contribuindo assim para desmistificar a ideia de que a escravidão era uma prática residual, concentrada nas fronteiras amazônicas do país e ligada às peculiaridades culturais ou geográficas daqueles locais. Assim, descobrimos que o trabalho escravo, com modalidades diferenciadas, também acontece no coração do Brasil, inclusive, em atividades que querem se tornar a marca do país, tais como a cultura da soja ou da cana de açúcar e acontece, também, nos recantos do Brasil que se auto qualificam de “Brasil desenvolvido” – Regiões Sul e Sudeste -, em ateliês de confecção de grandes grifes, canteiros de construção de grandes obras, reflorestamento em pinus, colheita da erva-mate ou da batata, reproduzindo os mesmos esquemas do trabalho escravo. Este avanço se deve em boa parte à mobilização dos Auditores-Fiscais nas várias regionais, conseguindo, nos últimos cinco anos, multiplicar a capacidade de intervenção. Hoje, mais da metade das fiscalizações são realizadas por grupos especializados das Superintendências Regionais de Trabalho e Emprego - SRTEs. Outro ponto de extrema importância foi a capacidade da Fiscalização do Trabalho em resistir, com firmeza, à enorme pressão promovida pelos interesses ligados ao agrobusiness, tentando desqualificar o trabalho realizado ou atacar um pretenso viés ideológico quando, na verdade, a Fiscalização busca simplesmente prestigiar o comando legal, resgatando a dignidade e a liberdade dos trabalhadores quando, na busca irrestrita de lucro, esses valores são negados a eles por meio de condições aviltantes e degradantes de trabalho.
Sinait: No que o senhor pensa que o Estado deve investir para fortalecer a Fiscalização do Trabalho?
Frei Xavier Plassat: O trabalho de um Auditor-Fiscal - imagino eu - deve ser ao mesmo tempo gratificante e profundamente frustrante. Não vejo tarefa mais nobre que essa, de resgatar o direito de uma pessoa, sobretudo daquelas que o sistema muitas vezes desdenha como “insignificantes”: peões do trecho, trabalhadores braçais desprovidos de educação formal, imigrantes desconectados de seu mundo, empobrecidos de uma história excludente. E não imagino frustração maior que aquela de saber que amanhã essa pessoa hoje resgatada, com toda probabilidade, voltará a cair nas garras do sistema da escravidão, pois, ao devolvê-la ao ambiente que gerou sua desgraça, nada mais foi feito além de “libertá-la”. Esta é uma questão sempre mais pautada quando o assunto é erradicar de verdade o trabalho escravo: qual poderia ser a contribuição de todos – e dos Auditores-Fiscais em particular – na quebra do ciclo vicioso da escravidão? O “Movimento Ação Integrada” é uma clara proposta de resposta a este crucial desafio. Vem de encontro a repetidas cobranças que nossa Campanha faz há anos. Portanto, uma iniciativa como esta é muitíssimo bem-vinda, pois tenta abordar as raízes do problema e construir soluções: qualificação, acesso à terra, efetivação de políticas públicas focadas nos grupos de risco, são obviamente parte da solução.
Sinait: Por que os Estados da Região Norte são campeões no número de resgatados?
Frei Xavier Plassat: Foi na região Norte do Brasil – alvo de sucessivas investidas do Estado e do capital por ele apoiado, para ali promoverem um desenvolvimento, cuja característica notória foi a depredação dos recursos – que, na história recente, foram detectados os sinais mais claros de revigoramento de formas de exploração da mão de obra típicas da escravidão moderna: endividamento compulsório e servidão por dívida (truck-system ou sistema do barracão). As atividades típicas do Norte (desmatamento, pecuária, carvoagem, mineração) têm sido propícias à utilização temporária, mas, intensiva, de grandes contingentes de mão de obra, com a constante busca de minimizar o custo de tais empreitadas, eludindo a responsabilidade empregatícia. Pelo afastamento dos centros políticos do país e pela prevalência, no controle social, econômico e político, de grupos e sistemas oligárquicos, os estados da Região Norte, por muitos anos, têm sido o palco aberto à livre exploração de mão de obra aliciada em regiões de caracterizada pobreza. Tanto é que esses mecanismos de exploração até hoje, frequentemente, são qualificados de “normais” ou “naturais” pelos que deles se aproveitam. Outros, com base no argumento de que esses trabalhadores já vivem em miserável precariedade nas suas próprias residências (acampamentos, barracos, favelas rurais), não veem nenhum problema em mantê-lo em condições igualmente precárias nas fazendas. O Norte é um território desafiador para qualquer trabalho de fiscalização: distância, acesso, dificuldades de todo tipo, complicam o trabalho e facilitam a permanência de comportamentos à margem da lei. Com um detalhe sempre intrigante: muitas vezes, os exploradores são empresários de fora que vão ao Norte aplicar receitas que já não mais ousam aplicar no Sul. Como se, para alguma elite deste país, existissem dois Brasis.
Sinait: O senhor pensa que o respeito às leis ambientais pode influenciar numa possível redução de trabalhadores escravizados em determinados setores como o carvoeiro?
Frei Xavier Plassat: A produção do carvão – ela mesma diretamente favorecida pela carência da gestão florestal – é típica dos efeitos catastróficos da ausência de controle ambiental no Brasil. Há mais de 15 anos que as siderúrgicas do polo Carajás assumiram o compromisso de substituir por madeira plantada a sua principal fonte de carvão vegetal: a madeira nativa. Mas foi preciso o embargo, determinado pelo IBAMA e o Ministério Público Federal - MPF, em 2011, para começar a pôr essa regra em prática. Mais da metade do carvão usado tem origem ilegal. Não é de se assustar, portanto, que quase todos os procedimentos desta indústria do carvão estejam encobertos de ilegalidade, de exploração criminosa tanto dos recursos naturais, quanto dos homens. A definição e a fiscalização de normas ambientais, ou de outra índole, repercutem muito além do seu alvo imediato: é o que mostra o controle das queimadas nos canaviais, o uso dos agrotóxicos nas lavouras de soja, como também a certificação da madeira para o ciclo do aço. Por isso, a ação integrada é a palavra-chave nessas matérias.