7-2-2012 - Sinait
O Correio Braziliense trouxe nesta terça-feira, 7 de fevereiro, matérias que relatam a discriminação sofrida por trabalhadores da construção civil, portadores de doença de Chagas.
Segundo a matéria, esse trabalhador geralmente esconde a doença para não ser rejeitado no trabalho. O caso retratado pelo jornal é o de um trabalhador de Goiânia, que nasceu na cidade de São Félix do Coribe (BA), conhecida como a “terra dos barbeiros”, protozoário transmissor da doença.
Há 20 anos o trabalhador tem a doença que deixa o portador fraco, com arritmia cardíaca, e com fraqueza. Sintomas não aceitos pelo empregador, que prefere pessoas saudáveis para executar o serviço de pedreiro.
A Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, ratificada pelo Brasil, proíbe a discriminação no trabalho por diversos motivos como raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social. A finalidade é reduzir a desigualdade de oportunidade, de tratamento no emprego ou profissão. Os Auditores-Fiscais do Trabalho seguem os preceitos do tratado internacional.
No caso específico de doença, a discriminação é comprovada se o empregador demitir o trabalhador por descobrir sua enfermidade. Nesta situação a empresa pode até ter que reintegrá-lo ao seu quadro e ainda indenizá-lo. Dependendo da doença, é assegurado ao trabalhador benefícios como aposentadoria, saque do FGTS, entre outros.
Mais detalhes sobre a situação do trabalhador com Mal de Chagas na matéria abaixo.
7-2-2012 – Correio Braziliense
Trabalhadores com o mal de Chagas reclamam da discriminação no mercado
Goiânia (GO) — Ninguém fala sobre a doença de Chagas no canteiro de obras onde Divino* trabalha. O assunto é um tabu, por uma razão simples: o patrão não quer saber de pedreiros doentes, muito menos de Chagas, debilitados por arritmias cardíacas. “Sempre faço minhas consultas embaixo do pano”, diz Divino.
Os profissionais de saúde que o atendem sabem do cotidiano de discriminação. Os atestados médicos emitidos aos pacientes do ambulatório de Chagas do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG) não trazem a verdadeira razão das consultas. Há apenas uma denominação genérica, “atendimento médico”, um pedido dos pacientes para evitar a rejeição no trabalho.
Divino vive na sombra no prédio de 20 andares erguido com sua ajuda. Apenas um colega de trabalho, também com o mal de Chagas diagnosticado, sabe de seu problema de saúde. É a única pessoa com quem conversa sobre o assunto no canteiro de obras. “Se ouvirem esse nome, Chagas, na área de construção civil, a gente não passa nem perto de ser contratado. Sou demitido em 24 horas se me descobrirem.”
A cidade onde Divino nasceu, São Félix do Coribe (BA), é a “terra dos barbeiros”, como ele conta. O pai e três irmãos foram infectados pelo protozoário causador da doença — um deles morreu subitamente, com uma parada cardíaca.
O Correio esteve na cidade de Divino. O local parece ter parado no tempo. Os barbeiros continuam invadindo pequenas propriedades rurais, o combate aos vetores está paralisado desde 2006, casas de adobe e pau a pique compõem os cenários na zona rural. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) chegou a firmar um convênio com o município, no valor de R$ 750 mil, para a melhoria dessas casas. Nenhum centavo foi depositado e o convênio terminou em dezembro passado.
Divino é herdeiro de uma doença associada à pobreza. Sabe há 20 anos que tem mal de Chagas, sofre com uma arritmia cardíaca, sente fraquezas que o incomodam no trabalho. “Se eu falar que tenho isso aí, estou condenado.” A iminência da demissão só não é mais assustadora para o pedreiro, pai de duas filhas, do que o temor da morte. “Tenho medo do que aconteceu com meu irmão.”
Posse (GO) — O Estado, para uma legião de doentes de Chagas nas comunidades rurais de Posse, cidade de 31,4 mil habitantes distante 320 km de Brasília, se resume a dois “gringos”. Interessados no mapeamento genético das famílias e em respostas para a evolução da doença, os norte-americanos escolheram uma região antes completamente infestada por barbeiros e hoje habitada por herdeiros de um mal esquecido. A dupla do Texas aparece uma vez por semestre, há 10 anos. Não há, num local tão isolado no Centro-Oeste brasileiro, quem não conheça os “gringos”, como são chamados pelos moradores.
No banco de genes formado até agora, estão 2 mil nomes. São 2 mil pessoas que só souberam oficialmente ter a doença de Chagas em função da existência de um projeto financiado de forma integral pelo governo dos Estados Unidos. O Estado brasileiro se esqueceu desses doentes crônicos. Inexistem diagnósticos, exames, acompanhamento, tratamento médico. Saber, pelos “gringos”, da manifestação da doença é um irônico detalhe.
O exame positivo para Chagas não muda nada na vida desses brasileiros. Uma das dificuldades encontradas pelos pesquisadores norte-americanos, aliás, é o encolhimento do banco de genes. Quando os “gringos” retornam aos povoados de Posse, muitos moradores já morreram por complicações cardíacas ou por inchaços no esôfago e no intestino que se mostraram irremediáveis.
É o Brasil real, e não é apenas o Brasil do passado. A doença que leva o nome de um brasileiro, Carlos Chagas, conta a história recente do país — sob a perspectiva dos mais pobres — e continua a escrever o futuro. Pequenos povoados do nordeste goiano estão infestados por barbeiros, vetores da doença. É o mesmo cenário na zona rural e até mesmo em áreas periféricas de cidades do Oeste da Bahia. O Estado, mais uma vez, virou as costas. Nessas regiões, as pesquisas com os vetores — para saber o nível de infestação — e os simples atos de borrifação de veneno estão paralisados. Faltam carros para o transporte e agentes de saúde no Brasil rural.
7-2-2012 – Correio Braziliense
O peso da rejeição
Vinicius Sassine
Pacientes diagnosticados com o mal de Chagas reclamam da discriminação no mercado de trabalho. Estudo revela que as perdas ao país em razão da doença chegam a 1,3 bilhão de dólares
Goiânia (GO) — Ninguém fala sobre a doença de Chagas no canteiro de obras onde Divino* trabalha. O assunto é um tabu, por uma razão simples: o patrão não quer saber de pedreiros doentes, muito menos de Chagas, debilitados por arritmias cardíacas. "Sempre faço minhas consultas embaixo do pano", diz Divino.
Os profissionais de saúde que o atendem sabem do cotidiano de discriminação. Os atestados médicos emitidos aos pacientes do ambulatório de Chagas do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG) não trazem a verdadeira razão das consultas. Há apenas uma denominação genérica, "atendimento médico", um pedido dos pacientes para evitar a rejeição no trabalho.
Divino vive na sombra no prédio de 20 andares erguido com sua ajuda. Apenas um colega de trabalho, também com o mal de Chagas diagnosticado, sabe de seu problema de saúde. É a única pessoa com quem conversa sobre o assunto no canteiro de obras. "Se ouvirem esse nome, Chagas, na área de construção civil, a gente não passa nem perto de ser contratado. Sou demitido em 24 horas se me descobrirem."
A cidade onde Divino nasceu, São Félix do Coribe (BA), é a "terra dos barbeiros", como ele conta. O pai e três irmãos foram infectados pelo protozoário causador da doença — um deles morreu subitamente, com uma parada cardíaca.
O Correio esteve na cidade de Divino. O local parece ter parado no tempo. Os barbeiros continuam invadindo pequenas propriedades rurais, o combate aos vetores está paralisado desde 2006, casas de adobe e pau a pique compõem os cenários na zona rural. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) chegou a firmar um convênio com o município, no valor de R$ 750 mil, para a melhoria dessas casas. Nenhum centavo foi depositado e o convênio terminou em dezembro passado.
Divino é herdeiro de uma doença associada à pobreza. Sabe há 20 anos que tem mal de Chagas,sofre com uma arritmia cardíaca, sente fraquezas que o incomodam no trabalho. "Se eu falar que tenho isso aí, estou condenado." A iminência da demissão só não é mais assustadora para o pedreiro, pai de duas filhas, do que o temor da morte. "Tenho medo do que aconteceu com meu irmão."
Impacto econômico
A doença de Chagas tem um impacto econômico que vai além dos custos para os serviços de saúde pública, principalmente em função dos afastamentos do trabalho — o risco que assombra Divino. A pedido do Correio, a DNDi, uma organização sem fins lucrativos de pesquisa de medicamentos para doenças negligenciadas, compilou estudos recentes sobre o impacto econômico do mal de Chagas.
A perda acumulada de salários e de produtividade industrial no Brasil, em decorrência do afastamento de trabalhadores com a doença, é de 1,3 bilhão de dólares (R$ 2,2 bilhões), conforme um estudo de 2006. Em toda a América Latina, segundo um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2010, perdem-se 752 mil dias de trabalho por ano em função da morte prematura ou do afastamento de trabalhadores doentes. "A doença tem um custo anual de 426 mil anos de vida perdidos por incapacidade", conclui o relatório.
Dados oficiais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) apontam gastos de R$ 9,2 milhões com o pagamento de aposentadorias nos últimos cinco anos. Foram registrados 10,8 mil casos da doença no período, um número subestimado que pouco reflete o contingente de doentes crônicos.
O mal de Chagas, entre as doenças tropicais na América Latina, é a principal causa de incapacidade de adultos jovens para o trabalho. O mal tem um grande impacto para o Sistema Único de Saúde (SUS). A estimativa é de que o custo com um paciente, independentemente da evolução para a fase crônica, varia de R$ 1.960 a R$ 94.873, sendo a média de R$ 6.646.
Como existem três milhões de doentes crônicos, conforme a estimativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e como a maioria deles depende do SUS, o mal de Chagas pode custar, em média, R$ 19,9 bilhões para a saúde pública. "A morbidade decorrente da fase crônica resulta em um alto impacto social e econômico, causando desemprego e diminuição da capacidade produtiva", resume Isabela Ribeiro, gerente do programa clínico em doença de Chagas da DNDi.
* Nome fictício a pedido do entrevistado
7-2-2012 – Correio Braziliense
Fila de espera
"E ainda costumam dizer que não existem doentes de Chagas", desabafa o médico Alejandro Luquetti, diante de um ambulatório lotado de pacientes. Luquetti pesquisa o mal de Chagas há 37 anos, desde o surgimento do laboratório especializado na doença, dentro do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia. O ambulatório de Chagas foi montado bem mais tarde, há 15 anos, numa região endêmica, com uma infinidade de doentes crônicos. Boa parte dos pacientes é de outros estados, principalmente da Bahia. Ambulatórios como o do Hospital das Clínicas são raros Brasil afora. É como se os doentes não existissem.
Responsável pelo laboratório, de onde extrai os dados dos exames de sangue para as pesquisas sobre a doença deChagas, Luquetti guarda cuidadosamente todas as fichas dos pacientes que já passaram pelo laboratório e pelo ambulatório. São 20 mil, distribuídas em dezenas de gavetas de um armário. É comum os pacientes abandonarem o tratamento. Também é alta a quantidade de pessoas que morrem subitamente. Em muitos casos, os médicos do ambulatório nem ficam sabendo das mortes, em razão do sumiço anterior desses pacientes. As fichas viram arquivos mortos.
Para conseguir atendimento com um dos especialistas em coração, esôfago ou intestino, os órgãos mais atingidos pelo protozoário causador da doença, é preciso entrar numa fila de três meses. Para realizar os exames de sangue, a fila é menor: 15 dias.
O ambulatório do Hospital das Clínicas estava lotado de pacientes no dia em que a reportagem do Correio acompanhou a rotina do atendimento, uma terça-feira. Uma das maiores filas era para o tratamento do megaesôfago. Desde o início do ambulatório, já foram mais de 3 mil atendimentos para o problema no trato digestivo. "Comida seca, como arroz, carne frita e pão, não desce. O "bolo" só desce se eu beber água", conta o aposentado Benedito Joaquim Bezerra, de 67 anos, um dos pacientes presentes no ambulatório.
Nascido e criado na roça, Benedito sabe que tem a doença de Chagas desde 1990. Há seis anos, passou a fazer tratamento para o esôfago. O inchaço já está avançado, um caso para cirurgia. Mas Benedito tem medo do procedimento. Recorre a paliativos, com dilatações do órgão por meio de sondas. "Dois vizinhos fizeram a cirurgia e não resistiram. Fico com medo", diz a filha de Benedito que o acompanha nas idas ao HC, Vanusa Custódio Bezerra, 36. (VS)
7-2-2012 – Correio Braziliense
Visão do Correio :: Mal de Chagas: ciclo vergonhoso para o Brasil
Motivo de orgulho do país em 2006, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) premiou seis décadas de ação sanitária contínua com atestado de que o Brasil interrompera a transmissão da doença de Chagas por seu principal vetor, o barbeiro Triatoma infestans, o certificado internacional é hoje um marco da desmobilização da ação do Estado em relação a esse mal.
Antes da competência da União, a borrifação de veneno para matar o inseto passou a ser responsabilidade dos estados e municípios, mas governadores e prefeitos reclamam que os recursos federais não chegam. O medicamento para casos agudos e crônicos, que a indústria farmacêutica já deixara de produzir, por não ser lucrativo, ficou exclusivamente a cargo do Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe), que chegou a passar sete meses sem fabricá-lo.
Resultado: 5 mil mortes são registradas anualmente, mas a estimativa é que o número real esteja entre 10 mil e 21 mil. Cerca de 11% dos municípios brasileiros (606), distribuídos por 13 estados, estão classificados como de alto risco. Outros 26,9% (1.497) são de médio risco e 22,2% (1.235), de baixo. O número de doentes crônicos é de pelo menos 3 milhões (1,5% da população do país), 75% dos quais relatam jamais terem sido orientados por um profissional da saúde. A situação chegou às raias do surrealismo — a ponto de, a 320km do Palácio do Planalto, 2 mil dos 31,4 mil habitantes de um município de Goiás somente saberem que têm a doença graças a pesquisadores do Texas (EUA) que, há 10 anos, aparecem por lá a cada semestre, com financiamento 100% norte-americano. Pior: o exame positivo obtido em terra estrangeira não melhora a vida desses brasileiros.
Em vez de honrar o certificado da OMS, o Brasil o desmerece, com o relaxamento dos controles. O abandono é fartamente ilustrado pelo Correio desde domingo. A série de reportagens revela que o Triatoma infestans perdeu a vez para outras quatro espécies de barbeiros, mas a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) não descarta o ressurgimento do principal vetor. As matérias mostram que a falta de uma política de Estado para o combate ao mal de Chagas (o nome vem do cientista brasileiro Carlos Chagas, que o descobriu mais de um século atrás) já prejudica inclusive outros países. Em outubro, relatório da 27ª Reunião de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas indicou que, só na América Latina, 12 nações estavam à espera do benznidazol, remédio produzido pelo Lafepe, único que ataca o protozoário Tripanossoma cruzi.
É chegada a hora de identificar e cobrar responsabilidades, mas sobretudo de implementar uma política nacional sistêmica contra esse mal, assegurando a prevenção e a assistência e o tratamento dos doentes. A descentralização do Sistema Único de Saúde não pode servir de desculpa para a desídia. Urge agir, inclusive, porque a enfermidade já ronda a periferia de regiões metropolitanas, podendo atingir a dimensão de epidemia urbana. Além do grave problema de saúde, a doença, associada à pobreza, tem importante fator social e econômico, por acarretar limitações graves à vida dos infectados, não raro levando ao afastamento do trabalho e até mesmo à aposentadoria precoce.