O Sinait divulga a crônica “Servidor público, ilegalidade e boa fé”, de Antônio José Mattos, diretor geral do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará - UFPA, que trata de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ que manteve a contagem, como tempo de serviço público, do período em que o servidor permaneceu indevidamente aposentado por falha da administração. O Estado havia aprovado o tempo em que ele trabalhou como trabalhador rural, quando este tempo deveria ser desconsiderado por não haver recolhimento à Previdência.
A decisão só não foi desfavorável ao servidor porque a Justiça levou em conta a inexistência de má-fé do aposentado, sua idade avançada e a falha de diversos órgãos da administração na concessão e anulação da aposentadoria.
Confira:
JURISCRÔNICA - Servidor público, ilegalidade e boa fé
ANTÔNIO JOSÉ MATTOS
O Direito contemporâneo vai buscar como recurso de interpretação os direitos fundamentais/direitos humanos, dentre outros paradigmas. Contrariamente, no passado, a solução do conflito entre um interesse privado e um público, a princípio, penderia indubitavelmente a favor do interesse representativo do Estado – o público – que não necessariamente coincidiria com o da sociedade (o interesse social).
Nos tempos de hoje, a leitura que se faz das normas jurídicas é por meio das lentes dos direitos humanos, pelo que a solução de um caso, nas condições acima expostas, envereda para vertente não propriamente a de outrora.
Por isso é que, por exemplo, se um cidadão doente necessita de remédios muito caros, de valor além de suas possibilidades econômico-financeiras, para tratar uma doença rara, o Estado tem o dever social de custeá-lo. A Constituição Federal clausula que a saúde é direito de todos e dever do Estado.
Em terreno mais arenoso, um caso aponta para a direção que queremos indicar: um servidor da Universidade de Santa Catarina requereu aposentadoria e pediu para computar, como tempo de serviço, período de trabalho rural, Esse período de trabalho rural, em que não há contribuição previdenciária mensal como no setor urbano, entrou para completar o tempo necessário à aposentadoria, o que foi aprovado tanto na Universidade quanto no Tribunal de Contas da União (TCU).
Posteriormente, verificou-se a falha do Estado (da Universidade e do TCU) e se pretendeu caçar a aposentadoria do servidor. É que só seria possível computar tempo de serviço, em caso de reciprocidade de previdências, se tivesse havido a contribuição previdenciária rural. No caso não houve, porque, de acordo com a lei, ele não havia necessidade de contribuir para ser beneficiário da previdência.
O TCU afirmou que o ato seria ilegal, porque não teria havido contribuição previdenciária durante o período de serviço rural. A decisão ocorreu anos depois do afastamento do servidor, quando ele já contava com 66 anos de idade. Tendo o caso ido ao Judiciário, quando da sentença do juiz federal, em 2007, o servidor já estava afastado havia nove anos e a ponto de completar 70 anos, idade em que ocorre a aposentadoria compulsória no serviço público.
O caso foi bater do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Recurso Especial n. 1.113.667-RS, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, da Sexta Turma, que decidiu unanimemente manter a contagem, como tempo de serviço público efetivo, do período em que permaneceu irregularmente aposentado por falha da administração, e concedeu a aposentadoria proporcional.
A decisão levou em conta a inexistência de má-fé do servidor, sua idade avançada e a falha de diversos órgãos da administração na concessão e anulação da aposentadoria.
Disse a decisão que “se a Administração deveria indeferir de pronto o pedido de aposentadoria e não o fez, o autor não pode ser responsabilizado pelo seu afastamento do cargo, motivo pelo qual o tempo em que permaneceu aposentado deve ser contado integralmente como tempo efetivo de serviço público federal.”
E ainda rematou dizendo: “Tudo isso demonstra ser incontroverso que a ilegalidade no ato de concessão do benefício deu-se por exclusivo equívoco da Administração, sem que fosse apurada má-fé do autor. Em casos como este, o erro da Administração não pode se voltar de forma inexorável contra situação jurídica constituída em favor do administrado“.
O cidadão estava de boa fé e teve, por falha do serviço público, aposentadoria a seu favor. Anos e anos depois, detectado o erro administrativo, já estando com quase 70 anos, seria contrariar os princípios dos direitos fundamentais, se lhe caçassem a aposentadoria; mais justo (ou menos injusto) é computar como tempo de serviço o que ficou ilegalmente aposentado e outorgar-lhe a aposentadoria proporcional. E assim procedeu o Tribunal.
A lição do STJ é cristalina: o direito fundamental superou o interesse público.
Antônio José Mattos é diretor geral do Instituto de Ciência Jurídicas da UFPA, doutor em Direito pela USP, advogado e presidente da APL - antoniojose@ajmattos.adv.br