Por Dâmares Vaz
Edição: Nilza Murari
Em 25 de outubro, o Fantástico e a GloboNews mostraram imagens da então embaixadora das Filipinas no Brasil, Marichu Mauro, agredindo sua empregada doméstica, na residência oficial de Mauro em Brasília. A partir de denúncia, autoridades brasileiras intervieram, o que resultou no retorno da trabalhadora ao país de origem e também na retirada da embaixadora do posto e retorno às Filipinas, onde deverá ser punida. Relembre o caso aqui.
Não foi a primeira vez que uma autoridade diplomática foi flagrada nesse tipo de irregularidade nem o primeiro caso envolvendo trabalhadoras domésticas filipinas no Brasil.
Em abril de 2020, em São Paulo (SP), Auditores-Fiscais do Trabalho do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho de São Paulo – SRT/SP resgataram outra trabalhadora doméstica filipina, de 26 anos. A jovem fugiu do apartamento onde trabalhava – e era mantida em cárcere privado – para uma funcionária de alto escalão do Consulado dos Emirados Árabes Unidos, nas imediações da Avenida Paulista. O caso foi enquadrado pela Fiscalização do Trabalho como crime de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.
Resgates de trabalhadoras filipinas empregadas no serviço doméstico vêm ocorrendo na capital paulista desde 2017, e o segmento vem sendo foco de crescentes fiscalizações por parte da SRT/SP.
Levantamento da Auditoria-Fiscal do Trabalho em São Paulo, relativo às fiscalizações indiretas de empregadores domésticos que solicitaram autorização de residência para trabalhadoras de nacionalidade filipina ao Departamento de Migrações do Ministério da Justiça – Demig/MJ, mostra que, de fevereiro de 2018 a dezembro de 2019, foram concedidos 80 vistos de trabalho para trabalhadoras domésticas filipinas atuarem no Brasil.
Desses vistos, 37 tiveram a participação direta – constam formalmente no processo administrativo – das agências Global Talent e SDI-Serviços de Domésticas e Babás Internacionais, ambas incluídas na Lista Suja de empregadores em abril de 2019.
As fiscalizações indiretas têm o intuito de realizar uma ação preventiva ao tráfico de pessoas e trabalho escravo no estado, explica a coordenadora do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da SRT/SP, a Auditora-Fiscal do Trabalho Lívia Ferreira, acrescentando que há na cidade de São Paulo de 300 a 400 trabalhadoras domésticas filipinas. “As notícias dão conta de que a comunidade filipina no Brasil vem crescendo muito e é composta basicamente por mulheres trabalhadoras domésticas”, pontua a servidora pública.
Nessas fiscalizações, a Inspeção do Trabalho constatou que 13 empregadas domésticas de nacionalidade filipina, cujas autorizações de residência foram concedidas pelo Departamento de Migrações do MJ, não tinham registro em Carteira de Trabalho, nem qualquer informação no sistema eSocial e nem recolhimentos de FGTS.
Foram identificadas seis empresas que atuam na área de “prestação de serviços de apoio à regularização migratória no Brasil”, que podem estar atuando como agências/intermediadores de mão de obra de imigrantes para o Brasil. O caso vem sendo investigado pelos Auditores-Fiscais do Trabalho.
Dez empregadores domésticos, contratantes de filipinas, encontram-se sob fiscalização pela SRT/SP, sendo que quatro foram autuados por deixarem de apresentar aos Auditores-Fiscais do Trabalho documentos referentes às contratações de trabalhadoras domésticas filipinas. A SRT/SP identificou outros casos de irregularidades nos contratos de trabalhadoras domésticas filipinas em Minas Gerais e no Distrito Federal. Esses casos serão comunicados às Superintendências Regionais do Trabalho dos respectivos estados, para início de fiscalização.
Autoridade diplomática
No caso flagrado em abril deste ano, a trabalhadora filipina foi trazida para o Brasil em agosto de 2019. Logo na chegada, teve seu passaporte retido. Quando ficava sozinha em casa, era vigiada por câmeras. Nos fins de semana, saía com a empregadora para fazer compras em supermercados e lojas. Ela era obrigada a anotar num “caderno de multas” os erros apontados pela patroa e o valor atribuído a cada um deles, o que gerou uma dívida de R$ 1.540 em cinco meses. Um dia depois da fuga da trabalhadora, que procurou ajuda de conterrâneos em São Paulo por meio da internet, a empregadora voltou ao país de origem.
Lívia Ferreira afirma que foram enfrentadas dificuldades em relação à imunidade diplomática da empregadora, que era autoridade diplomática. Além disso, relata a Auditora-Fiscal do Trabalho, a investigação começou antes, com conversas com a trabalhadora para saber se haveria necessidade de pedido judicial para entrar na residência. A fuga da trabalhadora facilitou a atuação da Inspeção do Trabalho.
A coordenadora registra ainda que no caso foram feitos todos os procedimentos do resgate, inclusive emissão de guia de Seguro-Desemprego e pagamento de todas as verbas, tendo a empregadora quitado suas obrigações por meio de advogados no Brasil.
“A trabalhadora ficou acolhida em local sigiloso e sob o monitoramento da Inspeção do Trabalho, com garantia de sua proteção, até que ela recebesse tudo o que lhe era devido. Foi dada opção à empregada de permanecer no Brasil, com documento, mas ela quis retornar às Filipinas. A empregadora foi responsabilizada no âmbito trabalhista, quitando as verbas, e pode ser inserida na Lista Suja. Há ainda um inquérito policial instaurado quanto ao episódio. Em tudo isso, a assistência jurídica da Defensoria Pública da União à vítima foi essencial”, relata Lívia.
Prevenção
O primeiro caso de resgate de trabalhadoras domésticas filipinas se deu em julho de 2017, em que a Auditoria-Fiscal do Trabalho conseguiu constatar o crime de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo depois da fuga de três trabalhadoras domésticas filipinas. Elas estavam empregadas em residências de alto padrão na capital paulista. A atuação da SRT/SP em prevenção veio depois disso, com as fiscalizações indiretas de contratos de trabalho de empregadoras domésticas filipinas para as quais eram solicitados vistos no Ministério da Justiça.
Os Auditores-Fiscais vêm atuando na verificação do cumprimento do contrato de trabalho, antes de a trabalhadora vir para o Brasil, explica Lívia. “Fiscalizamos itens como registro da Carteira de Trabalho, recolhimento do FGTS, se há fraudes em relação ao pagamento de passagem – se foi realmente o empregador que pagou –, o cumprimento da Lei Complementar 150/2015, se os documentos estão com as trabalhadoras. E autuamos no caso de irregularidades”, detalha a coordenadora.
Em maio de 2018, a agência de emprego Work Global Brazil, conhecida como “Governantas Filipinas” e “Global Talent”, e os empresários Leonardo Oscelavio Ferrada e Aguilar Noel Muyco foram condenados em primeira instância ao pagamento de indenização por danos morais no valor total de R$ 9,8 milhões por comandarem o esquema em que trabalhadoras filipinas eram contratadas por famílias brasileiras para servirem como domésticas em regime análogo à escravidão, e que vitimou as resgatadas em 2017. A sentença foi proferida pelo juiz Luis Fernando Feóla, da 5ª Vara do Trabalho de São Paulo. O processo teve origem na ação fiscal da Inspeção do Trabalho.
Leia também:
Auditores-Fiscais resgatam filipinas escravizadas em residências de alto padrão em São Paulo