Editorial: Trabalho análogo ao escravo é o trabalho escravo em sua forma contemporânea


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
31/07/2019



Talvez seja uma questão de retórica ou má interpretação. Mas é imperativo esclarecer, para que a dúvida lançada não prospere.


Desde que foi promulgada a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, não há mais a posse de uma pessoa sobre a outra, que caracteriza a escravidão clássica. Entretanto, a lei, por si só, não extinguiu uma situação que perpetua, ainda que com outras características, a exploração de trabalhadores “livres”. O termo “trabalho análogo ao escravo”, inscrito no artigo 149 do Código Penal, é, tão somente, uma maneira de se referir ao trabalho escravo em suas formas contemporâneas, em que não há posse, há exploração extrema. São exatamente a mesma coisa, em termos práticos.


Essa é a confusão que o governo, contraditoriamente, tenta provocar. É contraditório porque a instituição que combate todas as formas de escravidão previstas no artigo 149 do Código Penal é parte integrante da estrutura governamental. A Auditoria-Fiscal do Trabalho é uma carreira típica de Estado, responsável por fazer cumprir a legislação trabalhista, proteger o trabalhador e melhorar suas condições de trabalho, combatendo abusos e exploração, como o trabalho escravo e o trabalho infantil, além de promover inclusão pelo trabalho, como no caso de pessoas com deficiência e jovens aprendizes.


É inaceitável que o próprio governo, na pessoa de seu representante máximo, relativize as condições aviltantes às quais estão submetidos milhares de trabalhadores no Brasil. E que, para isso, ataque a Fiscalização do Trabalho, uma instituição que está nas entranhas do Estado brasileiro há mais de um século.


Trabalho escravo contemporâneo não é qualquer coisa. Há um conjunto de graves irregularidades e circunstâncias que leva os Auditores-Fiscais do Trabalho a reconhecer a exploração extrema de uma pessoa por meio do trabalho. São situações de não pagamento de salário, servidão por dívida, alojamentos que não passam de barracas de lona no meio de florestas ou redes penduradas em currais, comida estragada, água contaminada, omissão de socorro a acidentados e doentes, privação de liberdade, total ausência de privacidade e conforto, não fornecimento de material de trabalho, exposição a agrotóxicos, longas e extenuantes jornadas de trabalho, retenção de documentos, entre outras, todas previstas em lei.


A espessura do colchão, a falta de um lugar para guardar seus objetos pessoais, falta de banheiros e condições salubres são questões adjacentes, que os Auditores-Fiscais do Trabalho não podem ignorar, por força de lei. Somam-se ao conjunto de tudo o que é observado numa ação fiscal para formar a convicção e as provas de que estão presentes as características previstas no artigo 149 do Código Penal que tipificam o trabalho análogo ao escravo. Quem submete uma pessoa a estas circunstâncias comete mais do que infrações trabalhistas; está cometendo um crime. E por isso deve ser punido exemplarmente, o que, infelizmente, ainda é exceção no Judiciário. Não fosse, talvez a polêmica não estivesse instalada.


O discurso do representante máximo do governo reproduz o que as bancadas ruralista e empresarial no Congresso Nacional, além de grandes conglomerados financeiros, repetem à exaustão para tentar neutralizar a ação da Inspeção do Trabalho e mudar a redação do artigo 149 do Código Penal. A escolha pelo capital fica cada vez mais clara, em detrimento da defesa de condições mínimas de dignidade e bem-estar dos trabalhadores. É uma inversão de valores, um animus de violência e hostilidade à ação da fiscalização do Estado, que cria dificuldades adicionais ao combate ao trabalho escravo e outras mazelas, como os acidentes de trabalho, via desregulamentação das Normas Regulamentadoras.


O trabalho escravo contemporâneo, conjugado com o tráfico de pessoas, existe no mundo inteiro. Negá-lo, é inútil. É tapar o sol com peneira. Atacar a fiscalização não vai mudar a situação, somente irá maquiar estatísticas e produzir falsos números. A realidade sentida e vivenciada pelo trabalhador se agravará até novamente explodir, como na década de 1990, quando a denúncia ganhou o mundo.


Os Auditores-Fiscais do Trabalho e sua representação sindical não se calarão diante de ataques e tentativas de retroceder à barbárie. São 24 anos de experiência, de desenvolvimento de metodologia e ação, de discussões e debates internacionais, de parcerias dentro e fora do Brasil, um trabalho reconhecido mundialmente, com avanços e resultados significativos em termos de conscientização social. O Estado brasileiro deve cumprir a Constituição Federal e proteger o trabalhador, proteger a vida, promover desenvolvimento econômico e empregos dignos. Desconstruir o que foi construído a duras penas é fazer o papel de algoz do cidadão, que ficará, cada dia mais, sujeito à sua própria sorte.


 


Carlos Silva


Presidente do SINAIT

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