Na data de hoje, quinta-feira, 26 de outubro, o jornal O Estado de São Paulo traz o editorial “Uma vitória do preconceito”, cujo tema é a Portaria nº 1.129/2017, de 13 de outubro, editada pelo Ministério do Trabalho e publicada no dia 16 no Diário Oficial da União. A Portaria redefine o conceito de trabalho escravo, reduzindo as hipóteses de sua caracterização pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, além de estabelecer regras absurdas para validar a ação fiscal e, ainda, coloca sob autorização expressa do ministro do Trabalho a inclusão de empregadores na Lista Suja e sua divulgação.
O editorial, como se sabe, é a opinião do veículo. O Estadão, no caso, mostrou muito bem de que lado está.
O texto critica a decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, que concedeu liminar em Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 489/DF apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade, suspendendo os efeitos da Portaria. Afirma que a decisão “é uma comprovação de como o preconceito pode às vezes prevalecer sobre a realidade” e que se trata de uma “interpretação abstrata”. Também afirma que a suspensão é uma afronta ao Estado de Direito. Um desrespeito flagrante à ministra.
Passa, em seguida, a atacar os Auditores-Fiscais do Trabalho com ferocidade. Os três últimos parágrafos são dedicados exclusivamente a reproduzir o discurso que empregadores flagrados na prática do crime de reduzir pessoas à condição análoga à de escravos usam para desqualificar as ações fiscais e os Auditores-Fiscais do Trabalho. Atitude semelhante à do presidente da República, revelada em entrevista na semana passada e logo desmascarada pelo Sinait e por diversos veículos de imprensa, comprometidos em divulgar a verdade dos fatos.
Afirma o editorial que abusos vêm ocorrendo na fiscalização das situações de trabalho e que a lei tem sido usada para “intimidar” e “achacar” empregadores, fazendo subversão de seu conteúdo e sentido para incriminar “seja por motivos ideológicos, seja para obter benefícios pecuniários”. Para o Estadão, a Portaria é legal, não fere o Código Penal nem acordos internacionais, e visa evitar “descuidos nos autos de infração que dão margem a muitos abusos”. O jornal também não acredita que a Portaria tenha sido uma exigência da bancada ruralista para evitar a investigação do presidente da República. Corrobora a linha do Ministério do Trabalho de que é um aprimoramento da lei.
Por fim, o editorial sugere que os Auditores-Fiscais do Trabalho não conhecem a realidade do campo e que a fiscalização usa “estranha lógica, incompatível com a realidade geográfica e social do país”.
O Sinait repudia tais afirmações pelo simples fato de que não são verdadeiras e configuram-se extremamente ofensivas a uma categoria que conhece, como nenhuma outra, a realidade do trabalhador brasileiro.
O Auditor-Fiscal do Trabalho é o agente público que vai ao local de trabalho, que conversa com os trabalhadores, que vê e comprova a realidade da exploração, que ouve deles os relatos de sofrimento, que cheira a água e a comida podres e as feridas abertas sem assistência, que pisa o chão batido em que o trabalhador dorme, que vê as cadernetas dos “gatos” registrando as dívidas exorbitantes dos armazéns das fazendas, que encara capatazes armados, que emite os documentos que muitos trabalhadores nunca tiveram. O editorialista sentado em sua mesa conhece ESSA realidade?
Os supostos “abusos”, citados genericamente, devem ser provados. O editorial diz claramente que Auditores-Fiscais do Trabalho agem com o intuito de receber propina. No exorbitante número de escândalos revelados nos últimos anos no setor público – quase todos protagonizados por pessoas que não prestaram concurso público, portanto, são ocupantes de cargos com indicação política –, não há Auditores-Fiscais do Trabalho envolvidos, processados, investigados administrativa ou criminalmente.
É exatamente para não deixar brechas para acusações como as feitas pelo jornal, estas sim, preconceituosas, que os relatórios de fiscalização são cada vez mais detalhados e primorosos, repletos de provas da situação degradante encontrada. Contêm fotos, entrevistas, filmagens, documentos. As situações têm testemunhas, são confirmadas por autoridades como Procuradores do Trabalho e Policiais Federais e Rodoviários Federais que sempre participam das ações de fiscalização de combate ao trabalho escravo. Serão eles, também, levianos? Agentes públicos, altamente qualificados, que executam uma política de Estado, que aplicam a lei para promover dignidade e cidadania no trabalho.
Sim, é verdade que nem todos os fazendeiros e empresários agem fora da lei. De fato, é uma minoria. Porém, adotam conduta incompatível com a evolução dos direitos e garantias individuais e trabalhistas conquistados pela sociedade ao longo dos Séculos XX e XXI. Cultivam a cultura da senzala, e talvez, pior, pois os senhores de escravos pagavam caro pelos servos e proporcionavam a eles o mínimo para que sobrevivessem em condições de trabalhar duro. Na atualidade, a mão de obra é abundante, barata, descartável, miserável. Desta condição de vulnerabilidade social se aproveitam os que não têm escrúpulos. Poucos ou muitos, tanto faz. É uma realidade intolerável, que os Auditores-Fiscais do Trabalho seguirão combatendo.
Carlos Silva
Presidente do Sinait