O painel “Trabalho escravo: conceito e ameaças” contou com a participação de Vera Jatobá, diretora do Sinait, ex-secretária de Inspeção do Trabalho e pioneira no combate ao trabalho escravo. Ao lado dela, representantes dos Ministérios Públicos Federal e do Trabalho, da Comissão Pastoral da Terra e da Justiça Federal. O debate se deu dentro da programação do Seminário Reformas Trabalhista e Previdenciária: a ruptura do patamar mínimo civilizatório, organizado pela Delegacia Sindical do Sinait em Minas Gerais – DS/MG, com apoio do Sinait e centrais sindicais, e realizado no auditório da Escola Superior Dom Helder Câmara nos dias 6 e 7 de junho.
O juiz Federal Carlos Haddad falou como diretor da Clínica do Trabalho Escravo da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Historiou que o conceito de trabalho escravo existe desde o Código Criminal do Império, foi evoluindo até chegar ao que é hoje, tendo a última modificação sido feita em 2003, no Código Penal, após o resgate de milhares de trabalhadores pelos Auditores-Fiscais do Trabalho. Há projetos propondo a alteração do texto, retirando a jornada exaustiva e o trabalho degradante como características do trabalho escravo contemporâneo. Para ele, há uma preocupação excessiva com o conceito e mínima com o aspecto criminal, em imputar a pena.
Segundo Haddad, o processo penal no Brasil não funciona porque há extrema desigualdade na aplicação da Justiça, porque a demanda de processos é maior do que o sistema consegue suportar, porque a prescrição – sem similar no mundo – gera a impunidade e porque a via recursal é praticamente infindável. Assim, segundo o Juiz, pode-se ter um ótimo conceito de trabalho escravo, mas não há um sistema que o coloque em prática e puna os responsáveis. “Quando o sistema é feito para não funcionar, a solução fica distante”, disse Carlos Haddad.
Apesar disso, afirmou que os Auditores-Fiscais do Trabalho não devem desistir e que os relatórios produzidos pela fiscalização são uma grande arma para o Ministério Público Federal, chegando a substituir o inquérito policial.
Sem punição
A procuradora federal Adriana Scordamaglia faz parte de um grupo que acompanha a tramitação dos Projetos de Lei que tratam do conceito do trabalho escravo no Congresso Nacional e a atuação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, que ela considera ser vanguarda no tipo de investigação e na qualidade da prova produzida. Testemunhou que acompanhou três ações de equipes do Grupo Móvel que a levaram a ter maior sensibilidade sobre o tema e tratá-lo com mais relevância. Informou que o Ministério Público Federal já participou de 35 ações do Grupo Móvel e opinou que isso dá mais celeridade aos processos. Entretanto, são muito poucos os processos instaurados.
De acordo com a procuradora, há apenas treze processos no Superior Tribunal de Justiça – STJ e quatro já prescreveram. A média de duração dos processos é de oito anos. Não há nenhum condenado.
Sobre o Projeto de Lei – PL 432/2013, Adriana Scordamaglia questionou como um projeto de natureza civil poderá suprimir condutas típicas penais. Para ela, isso constitui-se uma ilegalidade que criará insegurança jurídica.
O PL 6442/2016, que prevê outras formas de pagamento para trabalhadores rurais, para a procuradora, traz, em sua essência, as hipóteses de trabalho escravo nas quatro modalidades descritas no artigo 149 do Código Penal. “Existem muitas ilegalidades que contrariam os fundamentos da Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho”. Concluiu dizendo que os dois projetos afrontam a verdade moral.
Falta de escolhas As causas da abolição da escravatura no Brasil foram o ponto de partida da fala do procurador do Trabalho Tiago Muniz Cavalcante, coordenador nacional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho – Conaete/MPT. Ele lembrou que a Lei Áurea não teve raízes humanitárias, mas, sim, econômicas, calcadas no interesse britânico em aumentar o preço da mão de obra local e proporcionar às suas colônias uma concorrência, além de criar mão de obra assalariada para consumir seus produtos.
“Todos os fatores que proporcionaram a perpetuação da escravidão permanecem até hoje”, disse o procurador. Até 1995 o Brasil não reconhecia a escravidão contemporânea. O caso de José Pereira criou um movimento para que fosse reconhecido o problema. José Pereira era um adolescente de 17 anos, aliciado junto com outros trabalhadores. Ele e Paraná fugiram e foram perseguidos, alcançados e alvejados. Paraná foi morto e José se fingiu de morto, conseguindo apresentar a denúncia. Os algozes nunca foram punidos. A CPT levou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1994.
Em 1995 o governo brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo e começou a tomar algumas providências. Criação do Grupo Móvel, reconhecimento do crime de aliciamento, criação do Seguro-Desemprego Especial e da Lista Suja, alteração do artigo 149 do Código Penal, Lei do Estado de São Paulo que cassa o ICMS das empresas por dez anos e a Emenda Constitucional nº 81 foram algumas delas, de 1995 a 2014. “Tudo isso terminou fazendo com que sejamos um exemplo no âmbito internacional para ser seguido porque temos instrumentos de enfrentamento à escravidão contemporânea. Mas um rol de medidas legislativas, executivas e judiciárias tem dificultado isso”.
Tiago Muniz citou o sucateamento da Auditoria-Fiscal do Trabalho, nos âmbitos estrutural e humano, e o número reduzido de equipes do Grupo Móvel como fatores que também dificultam o combate ao trabalho escravo, aliados à aprovação da Emenda Constitucional que limita gastos públicos, causando uma atrofia do Estado. Para o procurador do Trabalho, várias reformas trabalhistas estão em curso. Como exemplo, disse que o Supremo Tribunal Federal – STF vem promovendo a reforma com várias decisões, e que a terceirização é o câncer do Direito do Trabalho, promovendo acidentes, precarização, discriminação.
O PL 6442/2016, na visão dele, vai legitimar um feudalismo contemporâneo. Permite outras formas de pagamento, afasta a Norma Regulamentadora nº 31, flexibiliza a jornada em níveis extremos. O empregador não terá que se preocupar mais com o deslocamento dos trabalhadores até os locais de trabalho e eles poderão ficar à disposição durante 20 horas diárias em todos os dias do ano. Vai legitimar jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho sob o crivo da lei.
“A estratégia de quem defende o trabalho escravo é retirar jornada exaustiva e degradância do Código Penal. Existem vários projetos no Congresso, cujos objetivos aparentemente nobres são, na verdade, maldades”, disse o coordenador da Conaete. Lembrou que o conceito de trabalho escravo pode ser relativizado até certo ponto, mas que o verdadeiro escravismo é a vulnerabilidade social, a falta de escolhas. “Ser escravo é não pertencer a si mesmo, ser coisa, animal de tração, ter seu destino pertencente a um terceiro que explora o trabalho. A liberdade é o bem jurídico violado – mas é uma liberdade ampliada, de livre arbítrio”.
Considera precisa a definição contida na Convenção sobre a Escravatura, da Organização das Nações Unidas, de 1926: “1º A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade;”. O legislador brasileiro, na opinião de Tiago Muniz, em 2003, foi sábio, “porque tornou muito mais didático o conceito de trabalho escravo. Até então era preciso fazer um esforço hermenêutico para determinar quais seriam as condições. O legislador foi forçado a isso pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, pelo Ministério Público, pela sociedade. Essa intenção maligna é porque eles defendem o trabalho escravo. Não vamos deixar isso ocorrer. Vamos resistir e lutar com todas as nossas forças e com todas as nossas armas”.
Pré história
Diante das falas apresentadas, a Auditora-Fiscal do Trabalho Vera Jatobá baseou sua manifestação na experiência de quem foi pioneira no combate ao trabalho escravo no Brasil. Inicialmente, testemunhou que, sendo de Recife, Pernambuco, teve a honra e prazer de trabalhar com Dom Helder Câmara, homenageado pela instituição que sediou o Seminário, em Belo Horizonte (MG). “Cada dia que vivia com ele era um aprendizado. Desde ler a Bíblia até ir a favelas. Ele fazia missas no colégio em que estudei. Ele é a expressão da liberdade, nunca se intimidou. Se a imprensa não publicava o que ele dizia, as rádios-corredor diziam tudo. É sinônimo de liberdade”.
Vera Jatobá afirmou que o enfrentamento à prática do trabalho escravo no Brasil não começou em 1995. “Houve uma pré história em 1994. Caíram em nossos braços as denúncias de 1989. Tinha caído o governo Collor. Eu e Ruth Beatriz ficamos perplexas com as denúncias da Comissão Pastoral da Terra. Ficamos envergonhadas. Todas as respostas às perguntas eram ‘não sei’. Chamamos colegas de vários Estados para decidir o que fazer por conta própria. Fizemos uma Instrução Normativa para enfrentar trabalho escravo – sem dizer que era trabalho escravo. Como era um fenômeno praticamente rural, falamos em fiscalização rural. Teriam prioridade a constatação do trabalho forçado ou a presença de criança indígena. Mereceriam a atenção os mais distantes da proteção social. Combinamos vários marcos normativos – CLT, Constituição Federal. Era um Frankenstein. Não sabendo que era impossível, fomos lá e fizemos”, disse ela.
Foi um piloto do Grupo Móvel, para trabalhar o desconhecido, disse Vera Jatobá. “Não tinha nada. Mas aprendemos rápido. Não se pode trabalhar num enfrentamento desse tipo sem ter claro que não tem custo/benefício. Tinha que ter custo/impacto. Se apenas um fosse libertado já seria um sucesso. Liberdade não se negocia. Os direitos mais sagrados do homem são a vida, a dignidade e a liberdade. É o que define o ser humano. Essa pré história foi importante para disseminar entre os próprios Auditores-Fiscais do Trabalho essa ideia. Muitos colegas não acreditavam que existisse trabalho escravo. As coisas não são simples e levam tempo”.
O salto ocorreu quando o governo reconheceu formalmente a existência de trabalho escravo no país. “Foi uma conquista muito grande. O que está no plano poderia ter orçamento. A notícia já era pública e internacional. Isso foi um marco”, disse a Auditora-Fiscal do Trabalho. Depois disso, foi criado o Grupo Móvel e vieram outras conquistas, como o Seguro-Desemprego Especial para o trabalhador resgatado e a Lista Suja.
Em 28 de janeiro de 2004 aconteceu a Chacina de Unaí, episódio em que, segundo Vera Jatobá, afloraram os sentimentos de classe e humanos. “Foi a pior marca no sentido afetivo. Perdemos os colegas em ação fiscal em MG. Tentamos lembrar disso todos os anos, passou a ser o Dia Nacional contra o Trabalho Escravo e dia do Auditor-Fiscal. A homenagem foi transformar esse dia de tristeza em dia de ação”.
O trabalho escravo vem mudando de forma. Não está mais apenas na área rural. A opressão dos mais vulneráveis aflorou em São Paulo, nas oficinas de costura, alcançando trabalhadores nacionais e estrangeiros. A Auditoria-Fiscal do Trabalho teve que criar novas capacidades e procedimentos para lidar com a situação. “O trabalho escravo saiu das áreas mais remotas e veio para a área urbana com relações muito complexas. Mas no fundo é a mesma coisa, o mesmo trabalhador”.
A Auditoria-Fiscal do Trabalho convive com desafios e ameaças, com o menor número de Auditores-Fiscais dos últimos 20 anos, ao mesmo tempo em que a população cresceu. É um nó crítico, na avaliação da diretora do Sinait. “Só se trabalha com gente. Tem que ter boa lei, bons quadros, orçamento, e consciência da resistência nesse trabalho”.
Vera Jatobá informou que há 57 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que retiram direitos dos trabalhadores. “Se um não passa, outro passa. Tudo muda. Mas tem que mudar pra frente e não para trás. Estamos falando de pessoas, direitos humanos, dignidade. O governo atual está trabalhando para destruir todos os nossos direitos. Se tudo isso passar, os Ausitores-Fiscais do Trabalho serão zumbis. Tem que ir para a rua. Dizer não à reforma trabalhista! Não á reforma previdenciária! O Sinait acompanha e combate essas reformas, seja nas audiências públicas em Brasília e nos Estados, Notas Públicas e Técnicas, em busca de restabelecer a ordem. Essa missão é também do Sinait, não é só corporativa. É sonho, mas sem eles a gente não sai do canto”, finalizou.
De olhos abertos
Frei Xavier Plassat, frade Dominicano, representante da Comissão Pastoral da Terra - CPT, enfatizou que a instituição desenvolve desde 1997 a campanha “De olho aberto para não virar escravo”, calcada na experiência situada nas lutas socais pelo direito à terra. O trabalho escravo, segundo ele, é uma realidade misturada ao conjunto de discriminações e violências que os trabalhadores rurais sofrem.
A CPT, de acordo com Plassat, recebeu a condenação do Brasil na Organização dos Estados Americanos – OEA, no caso da Fazenda Brasil Verde, com grande alento porque fez com que o Brasil responda pela omissão e incapacidade de ter prevenido a exposição de centenas de trabalhadores entre 1988 e 2002. “O caso abre caminho para que casos equivalentes sejam levados à Corte. Deixou claro que as vítimas sofreram escravidão. Aspecto frisado pelos juízes bate com a conceituação que o Brasil utiliza: Carteiras de Trabalho confiscadas, trabalho sob ameaças, ausência de ação contra os criminosos, naturalização das condições habitualmente sofridas por essas pessoas vindas dos recintos mais pobres do Brasil”.
Frei Xavier apresentou trechos de relatos de vários trabalhadores resgatados sobre a situação vivida na fazenda Brasil Verde. A OEA disse que tudo isso aconteceu numa situação de discriminação estrutural histórica e em razão da posição econômica ocupada pelas vítimas. São jovens, analfabetos, homens, negros.
A naturalização é o problema principal. “Estão tentando nos convencer de que as condições degradantes são normais, depois de tanto esforço para apontá-las como anormais. É a naturalização da degradância na redução da definição do trabalho escravo. 80% dos casos são de degradância, sem água potável, sem alojamento, moradia coletiva das famílias, salário inferior ao mínimo, pagamento com álcool e drogas, endividamento, agressão física e psicológica”, disse o representante da CPT.
No caso do PL 432/2013, a justificativa é de que se adapta aos usos e costumes do campo. No PL 6442/2016 o ônus do negócio é transferido para o trabalhador. Institui o trabalho intermitente, a jornada exaustiva, extingue pagamento das horas in tinere, venda das férias, afasta a NR 31. Além disso, institui o critério de dupla visita da fiscalização em todos os casos. Isso inviabiliza a fiscalização, que não tem orçamento.
Xavier Plassat recorreu a uma citação da procuradora federal Raquel Dodge sobre a escravidão: “Escravizar não se limita a constranger nem a coagir a pessoa limitando sua liberdade. Também isto. Escravizar é tornar o ser humano uma coisa, é retirar-lhe a humanidade, a condição de igual e a dignidade. Não só a liberdade de locomoção é atingida e, às vezes, a possibilidade de locomoção resta intacta. Guiar-se por esse sinal pode ser enganador. A redução à condição análoga à de escravo atinge a liberdade do ser humano em sua acepção mais essencial e também mais abrangente: a de poder ser. A essência da liberdade é o livre arbítrio, é poder definir seu destino, tomar decisões, fazer escolhas, optar, negar, recusar. Usar todas as suas faculdades. O escravo perde o domínio sobre si, porque há outro que decide por ele. A negativa de salário e a desnutrição calculadas, no contexto de supressão da liberdade de escolha são sinais desta atitude”.
Finalizando, deixou a reflexão de que “no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão, sem tomar nenhuma medida para inserir os escravos na sociedade, continuamos na mesma trajetória de discriminação. Escravidão tem cor, tem raça. Abramos todos os olhos para não virar escravos”.
Tudo é relativo
O mediador, Auditor-Fiscal do Trabalho Marcelo Campos, também deixou seu recado dizendo que o seminário que se encaminhava para o fim deveria responder a duas questões, em sua opinião: Se a libertação formal em 1888 significou o fim da escravidão e se poderemos ser escravos hoje ou amanhã.
Segundo ele, o Brasil convive com a herança de 400 anos de escravidão e isso não passa impune. A luta contra a escravidão vai muito além de datas históricas e da assinatura da Lei Áurea, que foi uma libertação formal, mas não significou a mudanças da condição de vida dos escravos. Não existiam direitos. “Foi a luta que mudou depois e nos dias de hoje será a luta das vítimas que vai construir o conjunto das leis do trabalho decente e digno”.
Para Campos, a elite é essencialmente escravocrata e exploradora e o trabalhador é visto como um mero insumo produtivo. Se na década de 1990 o trabalho escravo era entendido como uma excepcionalidade e mereceu atenção especial e instrumentos jurídicos e de repressão próprios, hoje há uma articulação do capital no sentido de destruir todo o conjunto de conquistas dos trabalhadores. Para desconstitucionalizar o Direto do Trabalho não é necessário retirá-lo da Constituição, porque está lá de forma enunciativa. Tudo será, então, relativizado.
Marcelo Campos criticou a redução das equipes dos Grupos Móveis e a falta de normatização do que é considerado como jornada exaustiva. De acordo com ele, essa lacuna provoca questionamentos. Também disse que a Auditoria-Fiscal do Trabalho, diante da terceirização e da reforma trabalhista, em que tudo será permitido, estará numa situação muito difícil.