Sinait, MPF, MPT e CNDH marcam seu posicionamento contrário à Portaria que traz retrocesso à política de erradicação do trabalho escravo
Na semana passada, no dia 25 de outubro, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública para discutir a edição e as conseqüências da Portaria nº 1.129/2017, do Ministério do Trabalho – MTb. A Portaria, agora suspensa por liminar do Supremo Tribunal Federal – STF, altera o conceito de trabalho escravo do artigo 149 do Código Penal, tenta impor dificuldades aos Auditores-Fiscais do Trabalho para fazer a fiscalização de combate à escravidão contemporânea e, ainda, coloca sob expressa autorização do ministro do Trabalho a inclusão de empregadores na Lista Suja e sua divulgação. Por tudo isso, a Portaria causou grande polêmica e reações dos mais diversos setores engajados na causa da erradicação do trabalho escravo no Brasil e no mundo, que entendem que o governo promove um grande retrocesso.
Para o Sinait, não há outra solução possível a não ser a revogação da Portaria nº 1.129. Carlos Silva, presidente do Sindicato, participou da audiência pública e foi o último a se manifestar. Antes dele, falaram Ricardo Leite – advogado da União, integrante da Consultoria do MTb, Ana Carolina Alves de Araújo Roman – procuradora do Ministério Público Federal – MPF, Thiago Muniz Cavalcanti – procurador do Ministério Público do Trabalho e Fabiana Severo – Defensora Pública da União, integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Presidiram a audiência os deputados Paulão (PT/AL) e Luiz Couto (PT/PB), este último autor do requerimento da sessão, em conjunto com o deputado Patrus Ananias (PT/MG). As diretoras do Sinait, Ana Palmira Arruda Camargo e Vera Jatobá, e o Auditor-Fiscal do Trabalho Alex Myller acompanharam a audiência.
Carlos Silva mostrou aos presentes e aos que assistiam a audiência pública ao vivo pela internet, imagens de flagrantes das situações encontradas pelos Auditores-Fiscais do Trabalho nas ações fiscais – barracas de lona, água suja, colchões no chão batido, pessoas vivendo em currais, entre outras situações degradantes. Para ele, mais do que falar, é preciso olhar para o que é o trabalho escravo contemporâneo, uma realidade que, muitas vezes, não tem nada a ver com a liberdade de ir e vir. Sob a perspectiva da Portaria 1.129 estas cenas não se caracterizariam como trabalho escravo, seriam somente irregularidades trabalhistas.
“Escravo contemporâneo vive essa realidade que o MTb quer cegar. Não é coisa que está no museu. Está no dia a dia. A dignidade foi completamente esquecida pela Portaria 1.129. Não é por falta de saboneteira que se caracteriza o trabalho escravo, como disse o presidente da República para, de maneira deliberada, desqualificar o trabalho da fiscalização. Ele pinçou os autos de um conjunto de infrações que caracterizaram o trabalho escravo”, disse.
Dirigindo-se ao advogado Ricardo Leite – único integrante da mesa a defender a Portaria 1.129, apoiado apenas pelo deputado Nelson Marquezelli (PTB/SP) na audiência –, Carlos Silva disse sentir-se confuso com suas declarações. Ao mesmo tempo em que defendeu a Portaria, destacou que é preciso defender a dignidade da pessoa humana, o que o texto do documento não faz. Lembrou que organismos internacionais como Organização das Nações Unidas – ONU, Organização Internacional do Trabalho – OIT e Organização dos Estados Americanos – OEA, assim como MPF, MPT, ANPT, Anamatra, Sindifisco Nacional, ANPR, CUT e tantas outras entidades e instituições, se manifestam contrários aos termos da Portaria, avaliam como ilegal e classificam como retrocesso.
Esclareceu, também, que o acompanhamento da Polícia Federal nas ações fiscais não é uma inovação, ela já é rotina. Faz o papel de polícia judiciária, porém, não pode ser uma exigência para engessar a fiscalização. A exigência do Boletim de Ocorrência, que sequer existe no âmbito da Polícia Federal, não agrega, não aprimora e nem vai promover segurança jurídica.
A Portaria, para Carlos Silva, é um elemento a mais no ataque que vem sendo feito à fiscalização, há muito tempo, pelo governo e por empresários que não querem o fortalecimento da Auditoria-Fiscal do Trabalho. Isso se reflete em falta de concurso público, redução de equipes do Grupo Móvel com conseqüente diminuição do número de resgates de trabalhadores e violência contra os Auditores-Fiscais. Relatou que, por pouco, em São Félix do Xingu, no Pará, não ocorreu uma segunda Chacina de Unaí, pois a equipe foi recebida “a bala”. A Portaria, para ele, “é um afago aos que estão de costas para as políticas que são exemplo para o mundo. Nosso trabalho incomoda, e deve mesmo incomodar, os criminosos”. Disse ainda que está nas mãos do ministro do Trabalho encerrar essa polêmica e reconhecer o seu erro revogando a Portaria 1.129.
Pela revogação
Os demais integrantes da mesa de debates da audiência reforçaram que nada há de errado com o conceito de trabalho escravo do artigo 149 do Código Penal que justifique mudá-lo, muito menos por Portaria, que não é o instrumento adequado. O ministro do Trabalho extrapolou sua competência.
A procuradora federal Ana Carolina Alves ressaltou que vê com tristeza o retrocesso nas discussões depois de tantos anos de avanço. Esclareceu que Raquel Dodge foi explícita ao defender a revogação da Portaria junto ao MTb. Fez sugestões para melhoria das políticas de combate e não da Portaria, em si.
Lembrou que os Auditores-Fiscais têm poder de polícia, o dever e o poder de entrar em qualquer estabelecimento e, embora sempre conte com o apoio da Polícia Federal, não precisa dela para que isso ocorra.
Thiago Muniz considera a Portaria uma pá de cal sobre o enfrentamento ao trabalho escravo, que já vem sofrendo revezes há mais de um ano, com ataques à Lista Suja e “pane seca” na Auditoria-Fiscal do Trabalho, por falta de pessoal e de recursos. A Portaria, em sua avaliação, “cria embaraços à ação fiscal exigindo um BO – figura que não existe na PF; condiciona a Lista Suja à vontade do ministro, que já demonstrou que não tem interesse nisso; atinge a definição legal de trabalho escravo, acabando com o conceito. O ponto de inserção para configurar o trabalho escravo nunca foi a restrição de locomoção ou liberdade – isso é apenas um instrumento. Há vários exemplos de escravos livres. A Portaria é mais restritiva do que o passado colonial do Brasil. É um erro jurídico, histórico e internacional”, sentenciou. Afirmou que a Portaria deveria ser revogada espontaneamente, por tantos erros e equívocos que contém. Entretanto, caso isso não ocorra, a Justiça deverá dar conta de reparar. E se isso ainda não ocorrer, há as cortes internacionais.
A Portaria, na visão da Defensora Pública Fabiana Severo, tenta esvaziar espaços construídos histórica e democraticamente, como a Conatrae. Lembrou que a Lista Suja vem sendo questionada há muito tempo e que o governo já dava muitos sinais de ceder a pressões. Um exemplo foi a criação de um Grupo de Trabalho em 2016 para discutir formas de dar segurança jurídica ao instrumento, como se isso não existisse.
Quanto à liberdade de ir e vir à qual se apega a Portaria para caracterizar o trabalho escravo, ressaltou que essa é apenas uma das hipóteses de violação das liberdades. O STF já tem jurisprudência firmada a respeito de trabalho escravo, que não se restringe a ir e vir, mas tem a ver com a dignidade da pessoa humana.
Informou que o Conselho Nacional de Direitos Humanos, em reunião naquela data, deliberou pela instauração de um procedimento de apuração de condutas e situações contrárias aos direitos humanos previstos na Lei e na Resolução nº 6 de 2015 em face das medidas tomadas pelo ministro do Trabalho, de acordo com o Regimento Interno do Conselho.
Vozes dissonantes
Ricardo Leite foi o primeiro a se pronunciar. Defendeu a Portaria, alegando que há avanços no sentido de adotar medidas para criminalizar os “malfeitores”. Entretanto, não foi muito objetivo, abordando questões subjacentes, como estrutura da Advocacia Geral da União e a convicção de que o trabalho escravo existe e é uma chaga a ser enfrentada. Ressaltou as contribuições levadas pela procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, ao ministro do Trabalho.
O advogado foi questionado por todos à mesa, por mais de uma vez, sobre o posicionamento da Conjur do MTb a respeito da Portaria, uma vez que está eivada de ilegalidades. Como não respondeu a este e outros questionamentos, ensejou a cobrança até mesmo do deputado Paulão, com a ressalva de que não era obrigado a responder. Disse, então, que a questão está judicializada e que caberá, agora, ao Supremo decidir sobre a legalidade ou não.
A posição de Ricardo Leite foi corroborada pelo deputado Nelson Marquezelli. Ele afirmou que estava tomando lendo o texto naquele momento e que não viu “nada demais”, pois, até então, “valia a vontade do fiscalizador”. Considera que as reações à Portaria são apenas “gritaria”. Disse que nada foi negociado com a bancada ruralista, da qual ele faz parte, com mais 212 deputados. A exigência do Boletim de Ocorrência durante as ações fiscais, para ele, é um avanço.
À alegação de que a caracterização de trabalho escravo se dá sob a “vontade do fiscalizador”, Carlos Silva invocou as imagens que apresentou dos flagrantes das fiscalizações, em situações de extrema degradância, de exploração dos maus ruralistas, dos quais muitos estão nas cadeiras do Parlamento.
Resistência
Além dos deputados Paulão, Luiz Couto e Nelson Marquezelli, participaram da audiência Erika Kokay (PT/DF), João Daniel (PT/SE) e Newton Tato (PT/SP). Ressaltaram que a Portaria foi editada ao arrepio da Constituição Federal e de tratados internacionais. À exceção de Marquezelli, todos observaram o momento político em que foi publicada, valendo como moeda de troca para o presidente da República.
João Daniel disse que acompanhou fiscalizações e já viu trabalhadores escravizados em canaviais, em barracas, passando fome. Viu mortes por exaustão. “Esse ministro cedeu à pressão da bancada ruralista. Vivemos um período de vergonha internacional. O presidente segue dando golpe em todos os direitos dos trabalhadores. É uma vergonha para o ministro do Trabalho fazer esse papel ridículo que ficará na história como traidor dos direitos do povo e dos trabalhadores”.
Para Tato a Portaria é resquício de uma cultura escravocrata e teme que proposições como esta comecem a avançar no Parlamento. Destacou que os casos de trabalho escravo têm diminuído porque foram tiradas as condições da fiscalização e que isso tem que ser dito de todas as formas. “O governo Temer tirou recursos para diminuir as fiscalizações e resgates. Mas a verdade é que os casos aumentam. As coisas acontecem, mas não há mecanismos para mudar. A primeira investida foi tirar o dinheiro. Agora vem a Portaria. Só setores muito atrasados, do ponto de vista do caminho da humanidade, fazem esse tipo de proposta. Assusta. Parlamentares experientes defendem propostas de retrocesso do ponto de vista da humanidade”.
A deputada Erika Kokay disse que o governo está tentando transformar direitos em um favor. A Portaria vem nesse sentido, fazendo crer que é natural o sofrimento. “Comercialização da vida, coisificação, considerados moeda de salvação do presidente. Todos sabemos que essa reconceituação do trabalho escravo já foi tentada várias vezes. Quando se aprovou a Emenda Constitucional 81 houve essa tentativa, sob alegação de insegurança jurídica”, disse ela.
Kokay mostrou o folder do Sinait, que traz várias fotografias de situações degradantes e relatou que viu trabalhador comer em cocho de animais. “Se não é escravidão, é o que? Jornadas de mais de 20 horas. Querem que as lutas do passado sejam esquecidas. Trabalho é coisa de gente, não pode ser associado a sofrimento, degradação. Temos que fazer movimento para impedir coisas piores pela frente. Tem muita casa grande e senzala dentro do Congresso e que querem que se generalizem”.
Ao final, o deputado Paulão anunciou as sugestões colhidas durante a audiência, que serão deliberadas no âmbito da Comissão. Entre elas, acompanhar os projetos que tramitam na Casa pela revogação da Portaria e cobrar providências de autoridades competentes para que a Portaria seja revogada, fazer denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cobrar do MTb o cumprimento da Recomendação nº 2 do Conselho Nacional de Direitos Humanos e solicitar do MTb cópia do procedimento que originou a Portaria.