Trinta e um trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravos, no mês de março, em Nova Maringá, a 369 km de Cuiabá, durante uma operação dos Auditores-Fiscais do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho de Mato Grosso (SRT/MT). As vítimas trabalhavam no manejo da soja para a multinacional chinesa COFCO Agri, com sede nacional em São Paulo e instalações em todo o país. Participaram ainda da ação fiscal representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT) e policiais civis da Gerência de Operações Especiais (GOE). Um dos empregados havia sofrido um acidente de trabalho. A empresa foi autuada pelos Auditores-Fiscais do Trabalho da SRT/MT no dia 5 de abril pelas irregularidades encontradas.
De acordo com o Auditor-Fiscal do Trabalho Amarildo Borges de Oliveira, superintendente da SRT/MT, o combate ao trabalho escravo no país está no planejamento nacional desde 1995, com a criação dos grupos móveis. “Mato Grosso sempre teve tradição no combate ao trabalho escravo e é uma das superintendências que mantêm uma equipe especifica para este tipo de atuação”.
Ele explicou ainda que este é o segundo caso identificado pelos Auditores-Fiscais no estado em 2017. “A atuação no combate a esta chaga é considerada prioritária para a instituição”.
Irregularidades
De acordo com apuração dos Auditores-Fiscais, os 31 operários foram recrutados pelo Sindicato dos Trabalhadores de Movimentação de Carga de Nova Maringá, por contratação da COFCO Agri, com base na “lei do avulso” (Lei nº 12023/2009), que não foi cumprida, o que ficou configurado como fraude.
Segundo o coordenador da ação fiscal, o Auditor-Fiscal do Trabalho Luís Alexandre de Faria, a lei do avulso existe para proteger o empregado em relações de trabalho de curto prazo, como é o caso da movimentação de produtos agrícolas durante a safra, em que todos os direitos trabalhistas são assegurados, exceto o aviso prévio de dispensa e a multa de FGTS, tendo em vista que fica clara a contratação temporária.
Além disso, a referida legislação exige que o recrutamento seja promovido por sindicatos da categoria, justamente para garantir que o trabalhador seja protegido e defendido. Qualquer empresa que queira usufruir de mão de obra de avulso necessita procurar um sindicato.
Os direitos do trabalhador, como jornada de trabalho, remuneração, descanso, valor a ser pago por hora extraordinária e escala de trabalho, devem ser aprovados em assembleia prévia da categoria. No caso em questão, esse requisito mínimo não foi atendido pelo Sindicato dos Trabalhadores de Movimentação de Carga de Nova Maringá. “A fraude já começa aí”, esclareceu Luís Alexandre.
O segundo ponto, o acordo coletivo exigido, que deveria ter sido aprovado em assembleia, foi assinado apenas entre a entidade e a indústria e não foi protocolado no Ministério do Trabalho - MTb, para validar o documento. “Nem formalmente a coisa é correta", completou o coordenador.
A equipe identificou ainda o não revezamento de trabalhadores por escalas, o que caracterizou a nulidade do contrato entre a entidade e a COFCO. “A entidade não trabalhou como sindicato, agiu como um grupo de camaradas que se juntaram para ‘alugar trabalhador’, vender mão de obra e ganhar dinheiro em cima disso”, avaliou Luis Alexandre.
Argumento reforçado por Eduardo de Souza Maria, chefe da Seção de Inspeção do Trabalho de Mato Grosso. "Um sindicato deveria defender interesses do trabalhador e não do lado oposto."
Luís Alexandre explicou ainda que, diante do fato de os trabalhadores desempenharem suas funções todos os dias para apenas uma empresa, sem revezamento, foi comprovado o vínculo empregatício e desconsideradas as normativas de avulso. “A lei do avulso foi utilizada e desvirtuada para buscar ‘aparência de legalidade’”.
Com a nulidade do contrato entre o sindicato em questão e a COFCO Agri, a entidade sindical não responde pelos direitos trabalhistas, mas não se isenta dos delitos cometidos, tendo em vista que desempenhou os papéis de aliciador e de feitor – por tratar as vítimas com violência. “As consequências para o sindicato possivelmente serão graves pelo crime de aliciamento e com base no artigo 149 [reduzir alguém a condição análoga à de escravo] do Código Penal [Decreto-lei nº 2.848/40]”, esclareceu o coordenador.
Direitos desrespeitados
O primeiro direito desrespeitado foi o acesso à informação. Os associados ‘arrebanhados’ não tinham clareza de seu salário, nem sabiam, muitas vezes, que não teriam carteira assinada (considerada a modalidade ‘trabalhador avulso’). “Nada é claro para o trabalhador, ele não recebe nem sequer uma cópia do tido acordo coletivo”, narrou Luís Alexandre.
Normalmente, o trabalhador é contratado para uma jornada de oito horas diárias (44 horas semanais, máximo permitido por lei), para esforço físico em lavoura, a um salário de R$ 1.300. Mas não havia clareza no pagamento de horas extras em caso de ‘dobra’ (o empregado trabalha, neste caso, 16 horas seguidas), nem era concedido o descanso semanal remunerado - DSR, que corresponde à metade do sábado e a todo o domingo.
Além disso, tendo em vista que o trabalho era de grande esforço físico, não poderia ser permitida a ‘dobra’, pois configura ‘jornada exaustiva’. Os trabalhadores que eram pagos por produtividade não tinham clareza do quanto deveriam receber, nem recebiam na totalidade. “Houve a chamada ‘subtração da produção’. Ele recebe por produção, mas parte da remuneração não chega até ele”, explicou Luís Alexandre.
Foi registrada, ainda, a estratégia do ‘engano’ no momento da contratação, mostrando holerites de contratados antigos com salários mais altos, para afirmar que o trabalhador poderia alcançar tal valor a partir da produtividade.
O descanso intrajornada, conhecido como ‘horário de almoço’, também foi desrespeitado. O direito é de intervalo de uma a duas horas para cada jornada superior a seis horas totais e era concedido ao trabalhador apenas de 20 a 30 minutos, contando o tempo de deslocamento até o refeitório. Houve registro, ainda, de que a alimentação fornecida era de má qualidade.
Outra situação que configurou a condição análoga à de escravo foi o alojamento inadequado: quando a fiscalização chegou para averiguar a situação, os trabalhadores haviam sido remanejados para dois hotéis, dos quais um oferecia péssimas condições.
Considerando o hotel ruim e o alojamento anterior, os Auditores-Fiscais verificaram que a superlotação possibilitou a transmissão de doenças entre os trabalhadores (como gripe); número insuficiente de banheiros; locais insalubres e com insetos; colchões em estado degradado; não fornecimento de produtos de higiene pessoal; não fornecimento de água potável para beber; e alto índice de infecção (não havia copos descartáveis, só compartilhados).
As vítimas relataram assédio moral, ameaças e até mesmo violência física, por parte do feitor. Havia cartazes no alojamento “proibindo greves” com multas impostas. Um dos trabalhadores havia sofrido um acidente de trabalho e a situação não havia sido informada até a notificação da fiscalização, apesar de obrigatória a emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT).
O coordenador da ação registrou ainda a infração de “restrição à locomoção e à liberdade de romper o contrato e retornar à origem”. Significa, neste caso, a partir da situação de que, tendo o empregado se arrependido de aceitar tal proposta de trabalho, teria de esperar o pagamento, pois não tinha qualquer dinheiro para voltar para casa. “Ele fica completamente submisso às condições do empregador”, explicou Luís Alexandre.
Rescisão contratual
Os Auditores-Fiscais do Trabalho calcularam as verbas rescisórias de direito de todos os empregados, para o caso de ‘rescisão indireta por justa causa’, quando o empregador é quem cometeu a irregularidade.
Foram pagas as horas extraordinárias referentes às dobras, ao horário de almoço insuficiente e aos sábados e domingos desrespeitados.
Todos receberam o pagamento de um mês de aviso prévio, mais férias e 13º salário proporcionais aos dias trabalhados e ao aviso. Foram recolhidos o FGTS e a multa rescisória, bem como o INSS de direito.
Foi calculada, ainda, a diferença referente à produção, que estava sendo paga ‘a menor’. O trabalhador que sofreu acidente está recebendo atendimento de saúde completo.
Lei do avulso
Diante da fraude à lei do avulso e desconsiderando a relação trabalhista autônoma por ela preceituada, comprovou-se a nulidade do contrato entre a COFCO e o sindicato e todos os trabalhadores tiveram vínculo empregatício estabelecido diretamente com a indústria de processamento de produtos agrícolas. A COFCO, portanto, foi responsabilizada pelos direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, e indenizou financeiramente os empregados, na íntegra, no ato de rescisão contratual elaborada pela equipe.
A fiscalização detectou que havia vítimas na situação degradante há cerca de um mês, enquanto outras tinham sido contratadas quinze dias antes da ação. Estima-se que teriam passado pelo local mais de 200 trabalhadores desde janeiro. As contratações no período de safra geralmente são de até 60 dias.
Constatadas as condições degradantes pela fiscalização, o chamado ‘resgate’, que é o rompimento do vínculo empregatício dos trabalhadores com a empresa e o pagamento de todas as verbas rescisórias, foi realizado durante a ação e 30 das vítimas voltaram para suas casas. O empregado que se acidentou no trabalho segue em tratamento de saúde, vinculado à COFCO, afastado pelo INSS, e só terá a contratação rescindida quando estiver em plenas condições de trabalhar em outro local.
A empresa COFCO Agri foi procurada, mas preferiu não comentar o assunto.
Com informações da DS/MT.