RN: Equipe flagra trabalho infantil e degradante em matadouro de São Miguel

De 9 a 13 de fevereiro as Auditoras-Fiscais do Trabalho Marinalva Cardoso Dantas e Virna Damasceno, e a Assistente Social Célia Maria Galvão de Menezes estiveram no município de São Miguel


Por: SINAIT
Edição: SINAIT
26/02/2015



Situação chocou Auditoras-Fiscais, que sugerem nova fiscalização do setor de segurança e saúde e interdição imediata do local 


De 9 a 13 de fevereiro as Auditoras-Fiscais do Trabalho Marinalva Cardoso Dantas e Virna Damasceno, e a Assistente Social Célia Maria Galvão de Menezes estiveram no município de São Miguel, no Rio Grande do Norte, para realizar fiscalização no Matadouro Público Municipal. A ação foi realizada a pedido da Promotoria de Justiça da Comarca de São Miguel que, no ano passado, enviou à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego – SRTE/RN denúncia de que havia crianças e adolescentes trabalhando naquele ambiente, o que é proibido por lei. A denúncia veio acompanhada de reportagem impressa e em vídeo sobre as condições degradantes do matadouro. 


Coleta de informações


As Auditoras-Fiscais, antes de se encaminharem para a fiscalização propriamente dita, foram ao Conselho Tutelar da cidade, onde obtiveram a informação de que, mesmo com a repercussão da reportagem, as crianças continuavam trabalhando no matadouro. Os menores são filhos dos magarefes (açougueiros) e abatedores dos animais. 


Marinalva conta que ouviu dos conselheiros, com surpresa, o velho discurso de que é melhor que as crianças trabalhem do que fiquem nas ruas, se envolvendo com drogas. Para ela, esse é “um discurso bolorento, que combatemos há 22 anos, e mais enfaticamente nos últimos sete anos, depois que foi editado o Decreto das Piores Formas do Trabalho Infantil no Brasil”. Os matadouros/abatedouros constam da lista por serem, comprovadamente, insalubres e perigosos. No item 38 do Decreto nº 6.481/2008, estão descritos como riscos e gravames causados pela atividade desenvolvida em matadouros e abatedouros em geral: esforços físicos intensos; riscos de acidentes com animais e ferramentas pérfuro-cortantes e exposição a agentes biológicos; afecções músculo-esqueléticas (bursites, tendinites, dorsalgias, sinovites, tenossinovites); contusões; ferimentos; tuberculose; carbúnculo; brucelose e psitacose; antrax. 


No seu item 33, também são proibidos os trabalhos em contato com resíduos de animais deteriorados, glândulas, vísceras, sangue, ossos, couros, pelos ou dejetos de animais, por provocarem: exposição a vírus, bactérias, bacilos, fungos e parasitas; tuberculose; carbúnculo; brucelose; hepatites virais; tétano; psitacose; ornitose; dermatoses ocupacionais e dermatites de contato. 


No item 73, há ainda a proibição de se trabalhar com utilização de instrumentos ou ferramentas perfurocortantes, sem proteção adequada capaz de controlar o risco de perfurações e cortes, podendo levar a ferimentos e mutilações. 


Marinalva, Virna e Célia foram também à Promotoria e souberam que o promotor que fez a denúncia havia sido transferido para outra comarca e seu substituto estava em outro município. Inteiraram-se dos inquéritos em andamento contra matadouros em São Miguel e também nos municípios de Coronel João Pessoa, Dr. Severiano e Venha Ver. O único em que foram encontradas crianças trabalhando foi o de São Miguel. A Promotoria entrou com ação para que o matadouro seja fechado, pois não tem condições de funcionamento. Ainda não houve decisão da Justiça. 


Informadas de que as atividades do matadouro se iniciavam às 11 horas, seguiram para o local. Naquele dia, excepcionalmente, os bois não haviam sido entregues e o abate ficou adiado para as 15 horas. 


Tensão


No momento da fiscalização, as Auditoras-Fiscais perceberam um clima muito tenso. Marinalva relata que “alguns rapazes faziam cigarros de maconha na nossa frente e fumavam. O cheiro era bem forte. Quatro deles saíram num carro e voltaram velozmente, e quase bateram no veículo do MTE, que estava estacionado com o motorista ao volante”. 


Virna Damasceno e Célia Galvão entenderam que continuar a ação fiscal naquele momento seria arriscado, porque os ânimos estavam exaltados, mas Marinalva Dantas decidiu ficar dentro do matadouro para registrar algumas cenas de trabalho. 


Situação no matadouro


As Auditoras-Fiscais descrevem as cenas encontradas como “arcaicas e crudelíssimas”, com riqueza de detalhes. As crianças e adolescentes trabalhadores chegaram em grupos. Um deles contava com dois irmãos, os quais, juntamente com outro menino, trabalhavam subordinados a um adolescente, que prestava serviços para uma “fateira” – a pessoa que limpa as vísceras. Eles trabalhavam no matadouro às quartas e quintas-feiras e aos domingos. 


As instalações do matadouro, segundo Marinalva, são precárias e não oferecem as mínimas condições de trabalho, principalmente quanto às questões sanitárias e de segurança. A total falta de higiene no local oferece risco à saúde dos trabalhadores e da população que consome os produtos manipulados ali. 


Além dos danos à saúde, a Auditora-Fiscal identificou que havia riscos de acidentes com instrumentos cortantes e com a reação dos bois. Ela descreve que “no instinto de sobrevivência os animais tentam se levantar no momento em que são jogados no grande salão, ficando frente a frente com aquele que irá sangrá-lo, após a abertura do portão onde recebeu a pancada com o lado sem lâmina do machado. Presenciamos isso após o primeiro boi ser atingido com o golpe”. 


Depois que o boi é abatido, o menino filho do abatedor começa a lavar o chão ensanguentado. Faz isso descalço, enquanto os adultos usam botas. Em seguida passa o rodo, levando a água ensanguentada para uma vala que tem o mesmo destino do sangue que desce pela grade da sangria. Todas as demais crianças e adolescentes trabalham descalços ou com sandálias, tendo contato direto com o sangue, fezes e nacos de ossos e vísceras. 


Os magarefes e fateiros trabalham na informalidade, sem Equipamento de Proteção Individual - EPI, limitando-se ao uso de botas de borracha. Sequer usam luvas. Para as Auditoras-Fiscais, o ambiente é totalmente degradante e os trabalhadores são submetidos a condições indignas. 


“O ambiente é muito fedorento, pois os rios de sangue que escorrem para a fossa destinada a esses dejetos são sugados por um caminhão limpa fossa todos os dias. No dia 11 de fevereiro, presenciamos o caminhão fazer a coleta duas vezes, inclusive, no momento em que iniciaram a matança, estava colhendo os dejetos do dia anterior, o que exalou um odor fétido e nauseante”, diz Marinalva Dantas. 


Os magarefes e fateiros usam o trabalho dos adolescentes por ser econômico. Alguns trabalham em troca de pelancas e nacos de carne de pouco ou nenhum valor. No matadouro de São Miguel havia um grande número de familiares dos magarefes, mas algumas crianças acompanhavam seus irmãos ou amigos, também adolescentes. 


Quem paga aos matadores são os frigoríficos da Região, que são vinte e cinco ao todo, conforme apuraram as Auditoras-Fiscais. A maioria dos estabelecimentos é informal, sem licenças ou autorização para o funcionamento. O pagamento dos adolescentes e crianças é feito por semana no valor de  R$ 40,00 a R$ 70,00. O que ganha R$ 40,00 é o que limpa o bucho, que é o trabalho mais insalubre e menos valorizado. O que limpa mocotó recebe R$ 70,00 por semana. 


As fateiras declararam ter que comprar, por sua conta, a lenha, a cal para pelar os buchos (fatos), sacola para condicionar as peças, facas, raspador, amolador de facas, caldeirão, e botas. 


Na casa de fato, elas raspam as pernas e as patas dos bois com uso de facas e fogo, mergulhando peças de estômago na cal virgem para limpeza, limpando tripas e vísceras, lavando fezes. “Tudo isso precedido do testemunho do grande sofrimento dos animais, que não são atordoados sequer com marreta, mas com um machado. Às vezes é preciso golpear inúmeras vezes o animal, que resiste à morte”, diz Marinalva Dantas. 


A Prefeitura administra o matadouro, mantendo-o em ordem, providenciando material a ser usado nos abates, mandando o veterinário, o fiscal e o administrador ao estabelecimento. Também envia o caminhão para fazer o esgotamento e lucra com o trabalho desenvolvido em condições desumanas, uma vez que os magarefes pagam taxas ao Poder Público por cada animal abatido. No entendimento das Auditoras-Fiscais, a prefeitura é a beneficiária final do uso da mão de obra infantil, degradante e proibida. 


Autos de infração


Ao final da ação fiscal foram lavrados um Termo de Afastamento do Trabalho; um Termo de Comunicação e Pedido de Providências; e Autos de Infração por “manter em serviço trabalhador com idade inferior a 16 (dezesseis) anos”; “manter trabalhador com idade inferior a 18 (dezoito) anos em atividade nos locais e serviços insalubres ou perigosos, conforme regulamento” e por “manter empregado trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção ao trabalho”. 


Feira livre


No período em que estiveram em São Miguel, a equipe visitou uma feira livre e lá também encontraram crianças e adolescentes trabalhando, desempenhando tarefas proibidas por lei para menores de 18 anos. Foram uma criança e dois adolescentes encontrados. 


As Auditoras-Fiscais observaram, ainda, adolescentes trabalhando em bares à noite e em casas comerciais da cidade. A abordagem não foi feita porque não havia policiais na equipe e a avaliação foi de que a situação oferecia perigo. 


Nova fiscalização


Diante da gravidade da situação encontrada, Marinalva Cardoso Dantas sugere, em seu relatório, que seja realizada uma nova fiscalização no matadouro público de São Miguel, por Auditores-Fiscais da área de segurança e saúde. No entendimento dela, o estabelecimento deve ser imediatamente interditado e proibida a entrada de menores de 18 anos ou de qualquer pessoa que não tenha documentos que comprovem sua idade. 


A Auditora-Fiscal também entende que o local deve ter seu acesso fechado, pois há muitos riscos de acidentes com os bois que lá estão para o abate. “Na ocasião em que o boi ficou de pé, corri resfolegando para o carro, pois o mesmo poderia atingir qualquer um de nós que assistíamos ao seu suplício, e fugir para a estrada, o que poderia causar um acidente grave. Há o risco ainda, do animal empreender fuga pela porta que dá acesso diretamente à casa de fato, onde trabalham as mulheres e crianças”. 


Foi enviado à prefeitura, juntamente com os Autos de Infração, os Termos de Afastamento do Trabalho e Termo de Comunicação e Pedido de Providência, um modelo de placa para afixar na fachada do estabelecimento e no portão que dá acesso ao pátio, com o seguinte aviso: 


“Proibida a entrada e permanência neste local, de pessoas com idade inferior a 18 anos e sem portar documentos que comprovem sua idade.


(Art. 2º do Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação).” 


Para a equipe de fiscalização a situação “totalmente anômala” dos matadouros deveria ser submetida á Justiça para definir quem será o responsável pelos danos aos trabalhadores. “No que tange às crianças e adolescentes, não resta nenhuma dúvida: a prefeitura é a responsável pela permanência deles na atividade proibida, porque uma vez podendo protegê-las, nada faz”, afirma Marinalva. 


No relatório as Auditoras-Fiscais solicitam que a Prefeitura Municipal de São Miguel seja obrigada a realizar exames médicos em todas as pessoas que trabalham no matadouro, principalmente adolescentes e crianças, para verificar a existência de doenças decorrentes do contato direto com o ambiente insalubre. Em caso positivo, que seja obrigada a proporcionar o tratamento médico adequado. 


Audiência pública


A equipe sugere, também, que o Ministério Público Estadual, o Ministério Público do Trabalho, o Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador – FOCA e Conselhos ligados à infância e à adolescência realizem uma Audiência Pública em São Miguel sobre o trabalho infantil, envolvendo os Poderes Legislativo e Executivo. 


“Se os próprios conselheiros que deveriam tutelar as crianças e adolescentes acham que o trabalho é um mal menor, se os pais entendem que podem submeter seus filhos a trabalho degradante, os comerciantes acham que fazem caridade empregando precariamente adolescentes e a população silencia, fica patente que o Poder Público deve trabalhar em conjunto para que se crie um novo paradigma de cidadania em São Miguel”, diz Marinalva Dantas.

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