Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho impediu que empresa fiscalizada dificultasse a atuação dos Auditores Fiscais do Trabalho.
A sentença demonstra claramente a importância da cooperação entre as áreas de Fiscalização do Trabalho, Procuradoria do Trabalho e Justiça do Trabalho, para garantir uma atuação eficaz e célere.
O caso ocorreu numa fiscalização em que a empresa não admitiu que fosse filmado o ambiente de trabalho fiscalizado. Com base no relatório dos AFTs o Procurador propôs o ajuizamento de Ação Civil Pública e o Juiz prontamente sentenciou a favor da fiscalização, com aplicação de penas pesadas à empresa por qualquer embaraço causado à fiscalização.
Na ação, o Ministério Público fundamenta sua defesa justificando que a atividade fiscalizadora exercida pela Superintendência do Trabalho é típico exercício de poder de polícia, na medida em que se destina à aplicação de sanções administrativas. De tal forma, pode demandar cumprimento por execução fiscal ou por outras vias de processo judicial, e pode até mesmo ocasionar responsabilização criminal.
Confira, abaixo, a íntegra da sentença:

I - RELATÓRIO
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO ajuizou ação civil pública para a tutela de interesses públicos e difusos, relacionados ao meio ambiente do trabalho, em face da ré BRF – BRASIL FOODS S/A, pretendendo uma ordem judicial inibitória que a impeça de dificultar a atuação de Auditores-Fiscais do Trabalho em suas ações fiscais.
A ré reconheceu a procedência do pedido e contestou apenas parcialmente a pretensão, admitindo o dever de franquear acesso a documentos e instalações, mas não o de autorizar o registro fotográfico e audiovisual dos fatos fiscalizados.
É o relatório.
II - FUNDAMENTAÇÃO
O tema é singelo e é manifesta a prevalência da tese advogada pelo Ministério Público do Trabalho.
A atividade fiscalizadora exercida pela Superintendência do Trabalho é típico exercício de poder de polícia, na medida em que se destina à aplicação sanções administrativas. De tal forma, pode demandar cumprimento por execução fiscal ou por outras vias de processo judicial, e pode até mesmo ensejar responsabilização criminal.
Portanto, os fatos constatados nessa atividade pública devem ser materializados (rectius: documentados) na forma de prova, e não apenas servir para avaliação intelectiva abstrata, circunscrita ao convencimento subjetivo do próprio auditor-fiscal.
Diga-se, aliás, que a documentação dos fatos tem finalidade funcional, mas não apenas funcional, pois serve preponderantemente como garantia jurídica do próprio particular fiscalizado e eventualmente sancionado.
Se não fosse autorizada – e até mesmo exigida quando possível – a documentação como prova dos fatos verificados, não haveria como superar a presunção de veracidade que emana dos atos praticados por autoridades administrativas, bastando-lhes, para prevalecerem, a mera afirmação proveniente de tais autoridades.
Aliás, e aqui já me debruçando sobre o caso concreto, em vários pontos da legislação específica sobre a fiscalização do trabalho se pode constatar o poder e o dever de documentação externa dos fatos verificados pelos auditores-fiscais do trabalho, para que o conhecimento por eles adquirido seja extraído e sirva também para sensibilizar e formar o convencimento de terceiros, alheios ao ato em si, e não apenas do próprio auditor.
Notem-se os incisos V, VII e XII do art. 18 do Decreto 4.552/2002:
Art.18 Compete aos Auditores-Fiscais do Trabalho, em todo o território nacional:
V - examinar e extrair dados e cópias de livros, arquivos e outros documentos, que entenda necessários ao exercício de suas atribuições legais, inclusive quando mantidos em meio magnético ou eletrônico;
VII - apreender, mediante termo, materiais, livros, papéis, arquivos e documentos, inclusive quando mantidos em meio magnético ou eletrônico, que constituam prova material de infração, ou, ainda, para exame ou instrução de processos;
XII - coletar materiais e substâncias nos locais de trabalho para fins de análise, bem como apreender equipamentos e outros itens relacionados com a segurança e saúde no trabalho, lavrando o respectivo termo de apreensão;
De tais atribuições dos auditores pode-se compreender que a atividade fiscal por eles realizada não serve apenas para convencimento pessoal. Assim fosse, não haveria sentido em documentar-se os fatos verificados “extraindo dados”, “apreendendo documentos” ou “coletando materiais e substâncias”.
Está claro, então, o dever de documentar como prova os fatos verificados, inclusive para o convencimento de terceiros que não os presenciaram.
E desse simples dever de documentar como prova os fatos verificados decorre intuitivamente o dever de documentá-los da maneira mais robusta e segura possível, segundo os meios legalmente admitidos, com o intuito de evitar conflitos interpretativos. Essa é a finalidade intrínseca das provas: superar o estado de indeterminação.
Quanto melhores as provas, melhor cumprido o dever funcional.
Não há como afastar, então, a lógica preferência que se deve dar aos meios audiovisuais de registro da realidade, pois se caracterizam como prova nitidamente mais fiel em comparação a outros meios de prova, especialmente quando o fato a ser provado é um acontecimento com certa duração no tempo e não um evento imediato. Por exemplo, a documentação como prova de um método de produção só é plenamente compreensível por meio de um registro contínuo da sucessão de atos praticados.
A força dessa modalidade de prova é atestada pelo art. 225 do CCB:
Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.
Mas a ré, diante de todos esses argumentos, defende-se com a tese de que a resistência ao registro fotográfico ou audiovisual de seu estabelecimento tem como finalidade proteger a privacidade de “colaboradores” e garantir um suposto “sigilo empresarial”.
Ora, é óbvio que tal argumento não pode prevalecer. Se fosse admitido a investigados e fiscalizados resistir sob argumentos de sigilo e privacidade, além das hipóteses extraordinárias restritivamente previstas em lei, estaria absolutamente esvaziada a utilidade de qualquer investigação e desmantelado o poder de polícia do Estado.
Os bens que a ré pretende preservar, a privacidade e seus diferenciais, estão obviamente garantidos pelo próprio dever funcional dos auditores-fiscais do trabalho. É a autoridade pública que deve zelar pelo bom e correto uso das informações obtidas nas investigações que empreende, como estabelece, além da regra geral do art. 325 do Código Penal, especificamente o art. 35 do Decreto 4.552/2002, já mencionado:
Art. 35 É vedado aos Auditores-Fiscais do Trabalho e aos Agentes de Higiene e Segurança do Trabalho:
I - revelar, sob pena de responsabilidade, mesmo na hipótese de afastamento do cargo, os segredos de fabricação ou comércio, bem como os processos de exploração de que tenham tido conhecimento no exercício de suas funções;
II - revelar informações obtidas em decorrência do exercício das suas competências;
III - revelar as fontes de informações, reclamações ou denúncias;
IV - inspecionar os locais em que tenham qualquer interesse direto ou indireto, caso em que deverão declarar o impedimento.
Parágrafo único. Os Auditores Fiscais do Trabalho e os Agentes de Higiene e Segurança do Trabalho responderão civil, penal e administrativamente pela infração ao disposto neste artigo.
Portanto, é até ofensivo para a autoridade pública a resistência do fiscalizado utilizando tais argumentos, tratando o ato público como se espionagem industrial fora, sob mera precaução e sem qualquer elemento concreto que justifique tal temor.
Mais do que isso, se realmente os fatos verificados e documentados como prova puderem causar qualquer constrangimento extraordinário ou risco de espionagem, tal ameaça não pode justificar óbice ao registro e documentação em si dos fatos, mas apenas que se suprima, mediante decisão fundamentada, a publicidade intrínseca desses documentos, ou seja, proibindo a divulgação dessas provas exceto para suas finalidades naturais, pela implementação excepcional do regime de sigilo nos autos de ação fiscal ou de processo judicial em que venham eventualmente a ser utilizados.
Então, confirma-se a liminar anteriormente concedida, determinando à ré que se abstenha de dificultar o livre acesso de Auditores-Fiscais do Trabalho a todas as dependências de seus estabelecimentos sujeitos ao regime da legislação trabalhista, especificamente o de criar qualquer obstáculo à produção de documentos de qualquer espécie, principalmente fotográficos e audiovisuais, relacionados às condições de trabalho praticadas em tais estabelecimentos.
Não são devidos honorários advocatícios em razão da via processual utilizada, de natureza coletiva, conforme o disposto no art. 18 da LACP.
III - DISPOSITIVO
Isto posto, DECIDE a MM. Vara do Trabalho de Castro/PR, ACOLHER as pretensões formuladas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO em face de BRF – BRASIL FOODS S/A, para impor à ré uma medida judicial de conteúdo inibitório, com eficácia erga omnes em todo o território nacional, determinando-lhe que se abstenha de dificultar o livre acesso de Auditores-Fiscais do Trabalho a todas as dependências de seus estabelecimentos sujeitos ao regime da legislação trabalhista, especificamente o de criar qualquer obstáculo à produção de documentos de qualquer espécie, principalmente fotográficos e audiovisuais, relacionados às condições de trabalho praticadas em tais estabelecimentos, sob as seguintes penas:
a) De materialização de ato atentatório ao exercício da jurisdição, na forma do art. 14 do CPC, com aplicação de multa de R$ 1.000,00 a cada uma das pessoas responsáveis pela resistência;
b) De solicitação de auxílio de força policial para a execução específica da obrigação, na forma dos arts. 11 da LACP e 461 do CPC, pela realização coativa do registro documental assegurado aos Auditores-Fiscais do Trabalho, mediante remoção e solicitação de imediata prisão em flagrante delito das pessoas que obstacularizarem suas atividades, em virtude da eventual materialização do crime de resistência (art. 329 do CP), bem como expedição de termo circunstanciado para a persecução criminal pelo crime de desobediência (art. 330 do CP);
c) De adoção de qualquer outra medida de apoio que venha a se mostrar necessária, mais adequada e eficiente, como, por exemplo, a intervenção na gerência da unidade produtiva e até mesmo a interdição, como medida extrema.
Sem custas, na forma do art. 18 da LACP.
Intimem-se as partes, observando as prerrogativas de comunicação do Ministério Público do Trabalho.
Nada mais.
PAULO HENRIQUE KRETZSCHMAR E CONTI
Juiz do Trabalho